terça-feira, 5 de outubro de 2010

A visão (bem humorada) de um cardiologista

São Paulo 03 de outubro de 2010.

Pensando em como iniciar essa “resenha” solicitada mui gentilmente por vossa senhoria, caro Antonio Stélio, lembro que hoje não poderemos contribuir com o país através da nossa cidadania. Simplesmente pelo fato de estarmos fora de nosso foro eleitoral (você uns quilômetros a mais que eu), e ambos dentro do hospital - cada qual na sua função. Aliás, espero que mantenha sua condição de paciente e aguarde, com paciência, sua cirurgia.

Acho que a melhor maneira de expressar minha visão é – literalmente - começar do começo que, para mim, inicia no momento em que entrei na Unidade Coronariana (UCO) do InCor, naquele dia 29/09/10 e fiquei sabendo que havia um novo paciente no leito 4026. O colega de plantão me informou que se tratava de Antonio Stélio, 52anos, proveniente do Acre. O paciente estava diagnosticado Infarto Agudo do Miocárdio, já realizado cateterismo cardíaco no InCor. e que estava em programação cirúrgica.

Foi, então, que decidi conhecer a Antonio Stélio e saber se estava bem – nem sempre dentro de uma UCO ou UTI é possível conversar com os pacientes, pois na maioria das vezes estão inconscientes e entubados.

Logo que entrei no quarto percebi que poderia haver um diálogo devido ao fato de estar respirando sem a ajuda de aparelhos, e todas aquelas “parafernálias” que ficam ao lado da cama do paciente, o impedindo até mesmo um contato próximo. Vi também que o diálogo haveria de ser diferente do convencional; com possíveis neologismos, declinações e arcaísmos. Tudo isso porque no entremeado daquele corpo - todo contorcido na cama - havia livros com autoria do próprio paciente, um dicionário de expressões em latim e um netbook! Não hesitei em chamá-lo pelo nome, um pouco mais alto, por mais de três vezes, após repetir o “bom dia”, sem sucesso.

Imaginei (Réquiem aeternam dona eis domine – segundo Mozart Kv662): outro paciente sem poder conversar. Mas na hora percebi que apenas dormia. E como dormia! Recebi um grave e rouco “bom dia doutor dormi muito tarde, aliás cedo, já estava quase de manha quando desliguei meu computador... Troco o dia pela noite, fico escrevendo”.

Assim foi meu primeiro contato com o Stélio.

Disse a ele meu nome e depois conversamos um pouco sobre o ocorrido nos últimos dias, até sua vinda ao InCor. Informei que, juntamente com a equipe de médicos daquela unidade, iríamos dar continuidade ao seu tratamento. Naquele momento eu estava querendo saber como estavam os “trâmites legais” do pré-operatório. Ele, por sua vez, aparentou-se calmo e, informado sobre a cirurgia, disse que estava bem, porém, com sono. Mas eu sabia que, posteriormente iríamos conversar mais sobre o assunto. Jamais imaginei que ser convidado a participar deste trabalho, uma obra que revela o seu enfrentamento da situação - livro que imagino será revelador -, escrevendo a minha versão (visão do médico) sobre o fato.

E o fato é que não tenho vocação para escritor. Espero que meu relato/texto/resenha/anotação, ou seja lá como chamem, seja lapidado pelo nobre editor. Porém, eu posso assegurar que não tenho conflito de interesses, que não espero direitos autorais (mas, pelo menos uma cópia autografada!) e nem quero romper a relação médico-paciente, revelando informações sigilosas em desacordo com a sua vontade.

Na minha impressão, vejo que assim como outros milhares de escritores que tem a oportunidade de relatar parte de sua biografia, Stélio o faz de forma concisa e meticulosa, não guardando os pormenores. Por isso fico honrado de poder tentar esclarecer de forma coloquial, o modus operandis de sua internação.

Quero te dizer, caro Stélio, que apesar de estar se sentindo bem, o senhor é um cara forte e de sorte, pois, só pelo fato de vir do norte – (não! isso foi pela rima). Na verdade, a sorte é pelo fato de estar vivo. Tens lesões obstrutivas graves por placas de gordura em todas as principais artérias que irrigam o teu coração, (uma delas está até totalmente ocluída).

Enfim, és um sobrevivente de um infarto.

Poucos conseguem chegar até o hospital. No Brasil as doenças cardiovasculares matam cerca de 300 mil pessoas ao ano, o que corresponde a 820 óbitos por dia. Um pouco da função deste teu músculo cardíaco foi comprometido após este evento. Porém, o tratamento que estás recebendo (medicamentoso) e o que vai receber (cirúrgico), é capaz de restaurar parcialmente o dano, juntamente com as modificações em seu estilo de vida.

Fiquei feliz quando me disse que iria abandonar o cigarro. Porém ao mesmo tempo triste ao saber que vai, na verdade, substituir o cigarro pelo cachimbo (como me disse – na frente de sua irmã Rosângela e sua filha Stélia). Tudo bem que combina com um escritor umas cachimbadas introspectivas, mas não vale à pena soprar a vida para o alto, não é?

Stélio lembre-se: na vida de um escritor mais que um mecenas, uma linda e boa “macenas” ou até mesmo a Mega Sena, vale a Vida! E, se for para viver, que seja feliz, ou melhor, permanecer feliz!

Nem antes, nem depois, simplesmente já.

Luiz Ferreira - médico-cardiologista


Um novo amigo: Compadre Guilherme, sem dúvida a vida vivida sob o aspecto trágico capacita-nos para exercer a felicidade. É assim que venho reagindo e vivendo diante desta situação. Com isso tenho me fortalecido. Tua correspondência tem sido para mim de grande valia. Aliás, posso afirmar, com certeza, uma coisa: - Tuas palavras são medicinais! Falando em coisas como medicinais, o médico Luiz Ferreira, da equipe do Incor, dono de uma inteligência sofisticada, leitor de O Amor é Trágico, Ame, tem de revelado o novo amigo e quando pode, sempre aparece para uma prosa com este cambaleante sujeito acreano. Queria entrevistá-lo. Devido a situação, nao pude. O cardiologista, no entanto, não se fez de rogado e resolveu o problema: se dispôs escrever algumas palavras, aproveitando o domingo eleitoral. Eis, a razão pela qual publico acima, seu belo e inusitado. Com o devido muito obrigado, é claro.








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