segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Maravilhas da Filosofia

Henry Thomas
A SABEDORIA ORIENTAL
O primeiro filósofo do mundo

ACREDITA-SE geralmente que foram os gregos os _ primeiros filósofos (amantes da sabedoria) do mundo. Isso, porém, está muito longe de ser verdadeiro. Os egípcios começaram a sondar os mistérios da filosofia quasi 3.000 anos antes dos gregos. O primeiro grande filósofo, que a história menciona, foi o egípcio Ptah-hotep, que vi veu há uns 5.000 anos passados.
Ptah-hotep era Primeiro Ministro do Faraó. Quando se retirou da vida ativa, escreveu um "livro de sabedoria" para seu filho. E’ obra de um homem que viveu intensamente e que muito pensou. "A velhice está chegando — escreve êle no prefácio de seu livro — e quem é velho está engolfado num oceano de miséria. Os olhos estão enfraquecidos, os ouvidos moucos, as pernas frouxas e o coração entristecido… Mas o pensamento está cheio da sabedoria da experiência… Ouve com atenção, meu filho, as palavras de teu pai, para que sua experiência possa conduzir teus passos".
E depois Ptah-hotep prossegue "para encadear seu filho com um colar de sabedoria". Algumas das pérolas desse colar são dignas do próprio Salomão. "Não desprezes — adverte êle ao filho — aqueles que sabem menos do que tu. Porque não há limite para o saber. Há ocasiões em que até mesmo os ignorantes podem ensinar aos sábios. .. As palavras bondosas são mais raras do que esmeraldas, e um coração gentil é o mais precioso dos tesouros….. Se quiseres ser sábio, gera um filho. Se êle seguir
OS teus passos, não poupes teu louvor; se êle não seguir teus passos, não poupes a vara… Mas não uses a vara com cólera… Coisa para ser lembrada e querida é o caráter de um bom filho…"
"Ama tua mulher e não te juntes a outras mulheres… Fala quando tiveres alguma coisa suave a dizer; do contrário, guarda silêncio.. . Se quiseres governar os outros homens, aprende a obedecer e a cultivar a bondade.. . Em todas as ocasiões aprende a sabedoria do império sobre ti mesmo… Esse é o meio de ser feliz, esse é o caminho para o êxito".
Cinco mil anos se passaram desde o tempo em que o bom velho Ptah-hotep escreveu isso, mas o vinho de sua sabedoria conservou muito de sua côr e de sua fragrância até hoje. Podemos ainda bebê-lo e sentir-nos refrigerados.

O Tolstoi egípcio

NÃO muito depois de Ptah-hotep, viveu outro grande filósofo no Egito. Esse homem, porém, não foi um sereno observador da vida, mas um velho triste e desiludido. Para êle, a vida não era senão uma sucessão de reveses. "O homem, lamenta-se êle, nada mais aprendeu senão a opressão, a violência, a luta e a decadência". Como Tolstoi, acreditava que a melhor coisa para a raça humana seria desaparecer. "Pudesse a raça humana chegar a um fim, pudesse não haver mais nascimento, sofrimento e morte, e todo o mal se apagaria para sempre da face da terra".
Como os filósofos pessimistas dos nossos dias, preferia a morte à vida. "A suave Morte está diante de mim, a Morte, o bálsamo que cura todos os males, o fragante caramanchel de rosas que nos defende do deslumbrante
sol da vida, o marinheiro amigo que nos conduz à enseada da paz. A suave Morte está diante de mim, a Morte, a flor de loto que faz com que esqueçamos nossos pesares, o rio dentro de cujas águas lavamos nossas tristezas, o sossegado ono depois da febril batalha da vida. Salve, ó Morte! Fui um escravo na prisão da vida. Liberta-me de minhas cadeias e leva-me para casa, ó calma e aliviadora morte". Os egípcios, como vedes, tinham não somente seus Salomões, mas seus Schopenhauers e seus Tolstois. Mesmo na infância, a raça humana parece já estar algum tan to desiludida da vida. Não obstante, a vida, a despeito dos cépticos e dos pessimistas que tem falado mal dela, durante 5.000 anos, consegue, seja como fôr, prosseguir na sua marcha.



domingo, 2 de outubro de 2011

EU E ELA NO FACEBOOK


“Eu nada construo a meu redor, pois sou um ser de estirpe orgulhosamente profana. Qual um Zaratustra moderno, eu carrego cadáveres às costas, mas poucos são os que conseguem acompanhar a minha caminhada, sempre sob a mais absoluta diretriz dos instintos”. (EU)
***
- Boa madrugada, amiga...
- Oi, amigo, tá sem sono?
- Sou um notívago, fico cá com meus botões tentando voar para qualquer lugar onde a voz do homem seja fraca.
- Huumm...
- Dois...
- Hehehe...
- E você, ainda feliz...
- Sempre, para que ficar triste, né...
- Tristeza não vale a pena.
- Não vale não, amigo, dá dor de cabeça... E eu não gosto de tê-la.
- Eu gosto muito de escrever sobre a emoção humana, é algo fascinante, principalmente depois de compreender que usamos no máximo dez por cento de nossa cabeça animal, como dizia Raul Seixas. Decididamente, julgo o homem como um animal emocional.
- O homem é o ser mais vulnerável que existe, justamente por esse motivo.
- Exato, e esse potencial de vulnerabilidade é tão grande que dar medo, as pessoas pensam pelo coração... O meu coração, coitado, só funciona 45%.
- Somos emocionais e irracionais... 45% já tá de bom tamanho...
- Amo e odeio pela metade, sempre digo isso agora, depois das safenas.
- Eu, se fosse você, apenas odiava... Amar faz mal para o coração...
- Odeio em maior tamanho.
- Ótimo, assim iremos conversar por mais tempo.
- Somente amo a medida de 15%. Ninguém gostaria de tão pouco amor, acho que não...
- Muito bom, e de acordo com o que você disse, na verdade, então, são apenas 7,5%... Se for verdadeiro, está de bom tamanho!
- Com o desconto dos dias de lundum fechamos entre 3% e 4%.
- Huumm...
- Mas bem intenso.
- Bem, levando-se em consideração que poderia ser bem pior, está pra lá de bom.
- E, na verdade, nenhuma mulher suportaria amor acima de 10%, é uma bomba que explode a alma.
- Rsrsrs... Na verdade, amigo, mulher é um bicho meio esquisito...
- Mas é um bicho bom, amiga. Se eu tivesse que amá-la, começaria com 1%.
- Digamos que não sou muito chegada, mas elas são legais.
- Trazem segredos no corpo, cheiros extraordinários.
- Principalmente depois da maternidade...
- Mulher vale a pena até depois de ser vovó. O certo é que homem e mulher nunca vão se entender, e, se um dia se entender vão acabar com a graça.
- Dizem, pelo menos, que um homem só se tornaria amigo de uma mulher, se a achasse completamente desinteressante.
- Tempo bom era na idade da caverna, a gente dava uma porretada na cabeça dela, botava no ombro e levava pra casa.
- Verdade... Não se fazem mais homens como antigamente...
- Hoje temos que mandar flores, levar para jantar, fazer um poema, presentear com chocolates e dar beijos doces, para somente depois disso...
- Não é por nada não... Mas fora os beijos, todo o resto é dispensável...
- Concordo, mas sempre me traio. Gosto de um pouco de romantismo...
- Não existe hipocrisia no coito... Ou é, ou não é! Contato!
- Mas depois do contato, tem que ter a prosa gostosa, os beliscões, as brincadeiras, as piadas...
- Antes também.
- Sempre.
- Para mim, a inteligência é mais atraente do que as outras manifestações de afeto.
- Pelo menos nisso concordamos.
- Flores... Gosto delas no jardim...
- Tempos atrás, tinha uma campanha ecológica: em mulher não se bate nem com uma flor. Estraga a flor...  Quem disse que os machistas não tem senso de humor...
- Realmente! São pródigos.
- Machistas e feministas. Duas bostas.
- No duro! Uma vez eu me vi num antro feminista discutindo relacionamentos... Quase me crucificaram quando disse que adorava servir a quem amo...
- Devia dar a elas o poema da Cecília Meireles, quando ela diz que adora preparar o peixe que o marido pescou...
- Simplesmente disse o que eu penso.
- isso é o que importa.
- Eu gosto e não vejo nada de errado ou pecaminoso nisso, e não vou dizer nada para agradar ninguém.
- Eu gosto de ser servido, tento compensar com amor e proteção.
- Pronto! Então você é homem!
- Ainda creio nessa porra de amor, não sei por que. Mas, sem isso tudo seria pior ainda do que é.
- Mas quem é que não crê? Apenas faz como São Tomé...
- Acho que é isso que faz a joça desse mundo se mover!
- É, mas essa joça está deveras emporcalhada do que não presta e isso acaba estragando tudo!
- Você parece que está mais pessimista do que eu...
- Huumm... Só um pouquinho... Sabe... Eu odeio o mundo atual... Aliás, eu odeio o mundo que não consigo entender.
- É que pessoas inteligentes não conseguem dar uma de avestruz, então, o ódio é natural... Mas é bom não perder esta capacidade de odiar.
- Pense bem: o homem se diz o único animal racional, inteligente e capaz de grandes realizações, sob a face do planeta... Por que faz tanto mal?
- Tudo isso começou quando ele inventou Deus...
- É... As religiões são o maior mal da humanidade!
- Eles acabaram com a nossa inocência instintual, e colocaram o bem como valor universal.
- O bem e o mal são uma questão de referencial...
- Por isso me tornei nietzschiano. Estou acima do bem e do mal, vivo conforme meus próprios valores. Nunca corri atrás de sinecuras, status social, quero ser o que sou...
- Concordo e pratico!
- E não me acho um mal sujeito... Até sou capaz de atos de ternuras...
- Sentimentos.
- É tão bom conversar contigo, amiga...
- Gosto de conversar também contigo.
- Isso é bom.
- Mas me acham meio biruta...
- Mais do que eu, não...
- Às vezes sou esquisita.
- Mais do que eu, não...
- Por não acreditar em paradigmas... Por ser muito realizada.
- Triste de quem precisa de um referencial, mas o legal nisso tudo é que, com sua realização, você deu uma chega pra lá neles, isso é demais! Legal!
- Pratico o que acredito... E quando cismo... Nem por tortura mudo, sou um bocado cabeça dura...
- Isso é princípio.
- Sei lá o que é... Mas sou assim.
- Não mude, doa a quem doer, não mude.
- Eu adoro ser útil, mas odeio ser usada, já tô bem crescidinha para mudar... Só o Alzheimer me preocupa...
- Ser útil nos realiza e ser usado nos aterroriza.
- É vero!
- Esse alemão tá acabando com a vida de muita gente!
- Esse aí é o meu maior terror! Tenho um medo danado dele! Queria morrer assim: vapt-vupt! E logo!
- Eu queria morrer fazendo amor, nada de viver muito...
- Huumm... Boa ideia!
- Quero viver bem até os 65 anos, faltam, pois, apenas 13.
- Eu pretendo sair de cena um pouco antes... Fazer como os elefantes...
- Se afastar e deitar... Podíamos fazer um trato...
- Afastar-se e simplesmente morrer... O homem move-se na vida e na história pelo instinto, pela vontade, e por que não morrer da mesma forma?
- isso sim é puro Nietzsche.
- Sei disso...
- Os tolos não pensam assim, somente os grandes espíritos.
- Bem... Seja lá o que for eu quero ser como os elefantes...
- Eu serei também um elefante, tu serás uma aliá...  Afastemos-nos, pois, desta hipocrisia...
- Minha amiga disse que estou sofrendo de um processo oxidativo cerebral efeito H2O2...
- Se for contagioso quero encostar, ô se quero, em você.
- Hehehe... Ai você vai ficar loiro!
- Mas não burro!
- kkkkkkkkkkk, ah, isso não!
- Acho que vou correr o risco.
- Estou mais loira do que sempre... Será que ela pode estar certa?
- Nunca confie em um diagnóstico, principalmente se ela for médica...
- Rsrsrs... E ela é! Ela é!
- Então, não tem com o que se preocupar...
- Pronto! Não acreditarei mais na possibilidade dela ter razão!
- Isso! Isso! Agora vamos viver o tempo que nos será permitido!
- Continuarei a me guiar pelos ditames da minha consciencia! Serei apenas eu, e pensarei apenas no que me venha à cabeça... Ora, por que não?
 - Esse é o segredo de ser feliz...
- Vamos nos tornar elefantes!
- Juntos!
- Eu sou feliz por isso!
- E eu sou feliz por você!
- Bem, esse pacto é dependente...
- De que...
- De irreverência ambígua...
- Acho que isso não nos faltará, será o combustível.
- De não aceitação das prioridades como definitivamente nossas.
- Sem privilégios.
- Poderemos ser grandes amigos elefantes!
- Com inevitáveis trombadas! Pelo menos três trombadas por semana!
- kkkkkkkk... Amigos não podem ter atrativos para serem, definitivamente, amigos.
- Os atrativos são preciosos.
- E creio que de outra forma, haverão protestos...
- Se não houver protesto, não valera a pena, mas sem privilégios.
- Sem pecar...
- Sem pecar não vale a pena, mas sem privilégios.
- Exato... Quem quiser que nos siga!
- Batido o martelo! Que marchem os elefantes!
- À luta!
- Em um fremente corpo a corpo!
- Ó, céus, e onde ficará a atraente imparcialidade?
- Juntos aos pastores pedindo dinheiro para os cordeiros de Deus. Nós suaremos, choraremos, amaremos, odiaremos, venceremos, ficaremos extasiados como dois elefantes, longe da floresta.
- E bem distante deles?
- Muito distante, muito distante, pois, eles fedem a distancia.
- Ótimo, que os sigam os impuros!
- E todos os desprovidos de amor! E os maculados pela ignominia! E os fechados para a arte e para vida!
- Eles! Eles!
- Sim, eles! Urge o nosso primeiro combate!
- Estaremos unidos numa fluidez constante.
- E o mais gostoso de tudo: continuaremos mortais! E no fim de tudo serás feliz!
- E pode existir apreço?
- Sem apreço não vale a pena, mas sem privilégios.
- E o privilégio de estar só?
- Sem negociação...
- Huumm... Isso está me parecendo uma determinação...
- Assim não podemos morrer juntos, como os elefantes. Além do mais, estar só não é um privilegio, é uma necessidade.
- Valho-me dessa necessidade...
- Eu também. Por isso, cá estamos nós.
- Quero, em vida ser intensa, mas serena por fim...
- Serena, por fim, por mim, por ti, por que não desabrochas aliá inquieta e translúcida...
- Espero pela hora...
- Não me deixa esperar muito a muda vingar... Faz chuva de vez em quando, dá para vingar na terra seca, até no coração mais árido...
- Na aridez desabrocha o cacto... Ele tem espinhos...
- inevitável o machucamento, mas, é no cacto que durante a seca o gado se vale para comer e beber.
- Espinhoso, mas úmido... Sua polpa farta os desvalidos... Sei que não pertences a esse grupo...
- Este cacto pode ser quentinho, polpudo, cheiroso e molhado, mas não se preocupe, a mim não faltarão metáforas e paciência...
- E desapego...
- Para desapegar é preciso primeiro pegar, mas, ainda assim, não se preocupe... Já passou o tempo de se desesperar... O tempo é de ser livre, amar livremente.
- Passei o tempo de muita coisa...
- Mas jamais passará o tempo de morrer como os elefantes.
- Claro que não... Esse está bem perto, eu estabeleci um tempo...
- Então, está perto o tempo definitivo, o nosso tempo, que assim seja! Avoé Baco! Que o vinho nos guia nesta jornada.
- Nesse pouco tempo que me resta, só farei o que quero...
- Que assim seja, mas o que mais queres, por fim...
- Nem eu sei... Depende do dia e da hora, e das particularidades do clima... Sei lá... Não há nada de exato ou definitivo, na verdade, eu queria estar em outro mundo... Onde não houvesse a mentira, a maldade, a ambição, ah...
- Muitas dúvidas, numa delas a meteorologia pode ajudar, mas lamento informar que não existe este mundo que desejarias estar, apenas anseio que o acaso te premie com a alegria dos bons momentos com os raros espíritos...
- Pensamentos hedonistas me invadem... Ora bolas!
- Eles fazem bem, coloque-os em pratica também, é um direito...
- Estou colocando, sabe, mas eu tenho medo do vazio, não de estar só.
- Nesse caso, por que não me tirar para dançar...
- Huumm... Boa ideia. Adoro dançar!
- Então, é assim, que começaremos. Como um Zaratustra numa dança. O resto virá por si!
- Huumm... Falta você me entregar o seu livro...
- O baile é uma boa oportunidade, vou dormir como um gato borralheiro, e sonhar que perdi os sapatos nesta festa...
- Huumm... Certo. E eu guardarei seu sapatinho de cristal para a próxima oportunidade! Decida-se!
- Já decidi. E todos os meus desejos já foram insinuados. Boa noite!
- Boa noite!
***
"Eu traço círculos e fronteiras sagradas em torno de mim; sempre mais raros são os que comigo sobem montanhas sempre mais altas – eu construo um maciço de montanhas sempre mais sagradas". (ELA)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O homem rotineiro

Por José Inginieros

A rotina é um esqueleto fóssil, cujas peças resistem à carcoma do século. Não é filha da experiência; é a sua caricatura. A primeira é fecunda, e engendra verdades; a outra é estéril, e as mata.
Na sua órbita giram os espíritos medíocres. Evitam sair dela, e cruzar espaços novos; repetem que é preferível o mau conhecido ao bom ignorado. Ocupados em desfrutar o existente, alimentam horror a toda inovação que perturbe a sua tranqüilidade, e lhes traga desassossegos. As ciências, o heroísmo, as originalidades, as invenções, a própria virtude, parecem-lhes instrumentos do mal, posto que desarticulam o edifício dos seus erros: como nos selvagens, nas crianças nas classes incultas.
Acostumados a copiar, escrupulosamente, os preconceitos do meio em que vivem, aceitam, sem verificação, as idéias distiladas no laboratório social: como esses enfermos de estômago imprestável, que se alimentam com substâncias já digeridas nos frascos das farmácias. Sua impotência para assimular idéias novas, obriga-os a adotar as antigas
A Rotina, síntese de todas as renuncias, é o hábito de renunciar a pensar. Nos rotineiros, tudo é menor esforço; a preguiça enferruja a sua inteligencia. Cada hábito é um risco, porque a familiaridade se forma no sentido das coisas detestáveis e das pessoas indignas. Os atos que, a princípio, provocavam pudor, acabam por parecer naturais; a retina percebe os tons violentos como simples matizes, o ouvido escuta as mentiras com igual respeito com que ouve verdades, o coração aprende a não se agitar diante de ações torpes.
Os conceitos são crenças anteriores à observação; os juízes exatos, ou errôneos, são consecutivos a ela. Todos os indivíduos possuem hábitos mentais; os conhecimentos adquiridos facilitam os vindouros, e marcam o seu caminho. Até certo ponto, ninguém pode subtrair-se à sua ação. Não são exclusividades dos homens medíocres; mas, nestes, representam sempre uma passiva obseqüência ao erro alheio. Os hábitos adquiridos pelos homens originais são genuinamente seus, intrínsecos: constituem o seu critério, quando pensam, e o seu caráter, quando atuam; são individuais e inconfundíveis. Diferem substancialmente da Rotina, que é coletiva e sempre perniciosa, extrínseca ao indivíduo, comum ao rebanho; consiste em ser contagiado pelos preconceitos que infestam a cabeça dos outros. Aqueles caracterizam os homens; esta empana as sombras. O indivíduo plasma para si próprio nos primeiros; a sociedade impõe a segunda. A educação oficial envolve esse perigo; tenta apagar toda originalidade, pondo iguais opiniões em cérebros diferentes. A cilada persiste no inevitável trato mundano com homens rotineiros. O contágio mental flutua na atmosfera, e acossa por todos os lados; nunca se viu um tolo originalizado pela contiguidade, mas freqüentemente é possível que um engenho se atoleie entre palpavos.

A mediocridade é mais contagiosa que o talento.



terça-feira, 13 de setembro de 2011

O homem honesto

A mediocridade moral é impotente para a virtude e, cobardia para o vício. Se há mentes que parecem manequins articulados com rotinas, abundam corações semelhantes a balões inflados de preconceitos. O homem honesto pode temer o crime, sem admirar a santidade; é incapaz de iniciativa para ambas as coisas. As guerras do passado prendem-no pelo coração, estran-gulando-lhe, ainda em germe, todo anelo de aperfeiçoamento futuro. Suas opiniões são os documentos arqueológicos da psicologia social; resíduos de virtudes crepusculares, supervivencias de morais extintas.
As mediocracias de todos os tempos são inimigas do homem virtuoso: preferem o honesto, e o enaltecem, como exemplo. Há, nisso, implícito, um erro, ou uma mentira, que convém dissipar. Honestidade não é virtude, embora também não seja vício. Pode-se ser honesto, sem sentir uma ânsia de perfeição; basta, para isso não ostentar o mal, o que não é suficiente para ser virtuoso. Entre o vício, que é uma tara, e a virtude, que é uma excelência, flutua a honestidade.

A virtude se eleva sobre a moral corrente; implica certa aristocracia do coração, própria do talento moral; o virtuoso se antecipa a alguma forma de perfeição futura, e lhe sacrifica os automatismos consolidados pelo hábilo.

O homem, ao contrário, é passivo, circunstância que lhe marca um nível moral superior ao do vicioso, embora permaneça por baixo daquele que pratica ativamente uma virtude, e orienta a su vida no sentido de algum ideal. Limitando-se a respeitar os preconceitos que o asfixiam, mede a moral com a falsa medida usada pelos seus iguais, a cujas frações são irredutíveis as tendências inferiores dos acanalhados e as aspirações conspícuas dos virtuosos. Se êle não chegasse a assimilar os juízos, até ficar perfeitamente saturado, a sociedade o castigaria como delinqüente, por sua conduta desonesta; se pudesse sobrepor-se aos juízos, seu talento revelaria sulcos dignos de ser seguidos. A mediocridade está em não provocar o escândalo, nem servir de exemplo.

O homem honesto pode praticar ações cuja dignidade conhece, toda vez que a isso se veja constrangido pela força dos preconceitos, que são obstáculos com que os hábitos adquiridos emboraçam as variações novas. Os atos que já são maus, no juízo iriginal dos virtuosos, podem continuar a ser considerados bons pela opinião coletivo. O homem superior pratica tal como a julga, iludindo os prejuízos que subjugam a massa honesta; o medíocre continua denominando bem o que já deixou de ser, por incapacidade de vislumbrar o bem do porvir. Sentir com o coração dos outros, equivale a pensar com a cabeça alheia.

A virtude constuma ser um gesto audaz, como tudo o que é original; a honestidade é um uniforme que se veste resignadamente. O medíocre teme a opinião pública, com a mesma obseqüência com que o crédulo teme o inferno; nunca tem a ousadia de se opor a ela, e, menos ainda, quando a aparência do vício é um perigo ínsito em toda virtude não compreendida. Renuncia a ela pelos sacrifícios que implica.

Esquece que não há perfeição sem esforço; somente aqueles que ousam cravar sua pupila no sol, sem temer a cegueira, podem ver aluz, pela frente. Os corações apoucados não colhem rosas em seu jardim, com medo dos espinhos; os virtuosos sabem que é necessário expôr-se a eles, para colher as flores mais perfumosas.

O honesto é inimigo do santo, como o rotineiro o é do gênio; este é denominado" louco", e aquele é julgado "amoral". Expliça-se: eles os medem com sua própria medida, em que estes não cabem. Em seu dicionário, "cordura" e "moral" são os nomes que eles reservam às suas próprias qualidades. Para a sua moral de sombras, o hipócrita é honesto; o virtuoso e o santo, que a excedem, parecem-lhes "amorais", e, com esta qualificação atribuem-se-lhes, veladamente, certa imoralidade. Homens de pacotilha, dir-se-ia feitos com retalhos de catecismo e com aparas de vergonhas: o primeiro ofertante pode comprá-los a baixo preço. Em geral, mantêm-se honesto, por conveniência; algumas vezes, por simplicidade, se o prurido da tentação não importuna a sua estupidez. Ensinam que é necessário ser como os outros; ignoram que só é virtuoso aquele que aspira o melhor. Quando nos murmuram, aos ouvidos, aconselhando-nos a renunciar o sonho e a imitar o re banho, não têm o valor de nos sugerir, diretamente, a apostasia do nosso ideal, para sentar-nos a ruminar a merenda comum.

A sociedade predica: "não faças o mal, e serás honesto". O talento moral tem outras exigências: "aspira uma perfeição, e serás virtuoso".

A honestidade está ao alcance de todos; a virtude é de poucos eleitos. O homem suporta o jugo a que os seus cúmplices o submetem; o homem virtuoso eleva-se sobre os demais, com um movimento de aza.

A honestidade é uma indústria: a virtude exclue o cálculo. Não há diferença entre o cobarde que modera seus atos, com medo do castigo, e o cubiçoso que os pratica, na esperança de uma recompensa. Ambos levam em partida dupla as suas contas correntes com os preconceitos sociais. Aquele que treme diante do perigo, ou busca uma prebenda, é indigno de proferir a palavra virtude: por esta se arriscam à proscrição e à miséria: Não diremos contudo que o virtuoso é infalível. Mas a virtude implica uma capacidade de retificações espontâneas, o conhecimento leal dos próprios erros, como uma lição paar si mesmo e para os outros, a firme retidão da conduta anterior. Aquele que paga uma culpa, com muitos anos de virtude, é como se nunca tivesse pecado: purifica-se. Ao contrário, o medíocre não reconhece os seus erros, nem se envergonha com eles, agravando-os com impudor, sublinhan-do-os com a reincidência, duplicando-os com aproveitamento dos resultados eventuais.

Predicar a honestidade seria excelente, se ela não fosse uma renúncia da virtude, cujo norte é a perfeição incessante. Seu elogio empana o culto da dignidade, e é a prova mais segura do descanso de um povo. Eneltecendo o fraudulento, afronta-se o severo; pelo tolerante, se esquece o exemplo. Os espíritos acomodaticios chegam a aborrecer a firmeza e a lealdade, a força de medrar com o servilismo e a hiprocrisia.

Admirar o homem honesto, é rebaixar-se; adorá-lo, é envilecer-se. Stendhal reduzia a honestidade a urna simples forma de medo: convém acrescentar que não é um medo ao mal em si, senão da reprovação dos outros; por isso, c compatível com uma ausência total de escrúpulos para com todo ato que não tenha sanção expressa, ou que possa permanecer ignorado.

"J’ai vu le fond de ce qu’on appelle les honnêtes gens: c’est hideux", dizia Talleyrand, perguntando-se a si próprio o que seria de tais indivíduos, se o interesse e a paixão entrassem em jogo. Seu medo ao vício e sua impotência para a virtude se equivalem. Não são assassinos, mas não são heróis; não roubam, mas não dão metade do seu pão ao inválido; não são traidores, mas também não são leais: não assaltam a descoberto, mas não defendem o assalto; não violam virgens, mas não redimem as decaídas; não conspiram contra a sociedade, mas não cooperam para o engrandecimento comum.

Diante da honestidade hipócrita — própria de mentes rotineiras e de caracteres domesticados — existe uma heráldica moral, cujos brasões são a virtude e a santidade. E a antítese da tímida obediência aos prejuízos, que paraliza o coração dos temperamentos vulgares, e que degenera nessa apoteose de frieza sentimental que caracteriza a erupção de todas as burguezias.

A virtude requer fé, entusiasmo, paixão arrojo; vive disso. Requer tais coisas na intenção e nas obras. Não há virtude, quando os atos desmentem as palavras, nem cabe nobreza, onde a intenção se arrasta.

Por isso, a mediocridade moral é mais nociva nos homens conspícuos e nas classes privilegiadas.

O sábio que atraiçoa a sua verdade, o filósofo que vive fora da sua moral, e o nobre que desonra o seu berço, descem às mais ignominiosas das vilanias; são menos desculpáveis, do que o truão enlodaçado no delito. Os privilégios da cultura e do nascimento impõem, ao que desfruta, uma lealdade exemplar para consigo próprio.

E’ inútil que perdure em ridículos pergaminhos a nobreza que não está na nossa ânsia de perfeição; nobre é o que revela, em seus atos, um respeito para com a sua classe, e não o que alega sua ilustre ascendência, para justificar atos ignóbeis. Pela virtude, nunca pela honestidade, é que se medem os valores da aristocracia moral.



quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Os filósofos do epicurismo

Os epicuristas são os inimigos hereditários dos estóicos.

Não tem fim a polêmica entre as dois campos. Fundador da escola é Epicuro de Samos (314-270). Foi seu mestre o discípulo de Demócrito, Nausífanes. A ascendência atomista foi decisiva para toda a escola, que Epicuro dirigiu no seu Jardim, em Atenas, desde 306.

E foi devido a esses Jardins que os epicuristas receberam a denominação — os do Jardim.

A figura do fundador da escola constitui a alma do todo, mais do que o método ou a dogmática aí em pregados. Epicuro era uma fina, distinta e atraente personalidade. Era louvado pelo seu desinteresse, sua brandura, bondade e profunda concepção da amizade.

Suas máximas valiam tanto como dogmas.

Dos seus escritos, que devem ter orçado pelos 300, só se conservaram fragmentos. — Entre os demais membros da escola merecem menção os seguintes: Metrodoro de Lâmpsaco, talvez coevo, representante de uma doutrina algo rústica do prazer. Da segunda metade do segundo século a. C, Apolodoro, polígrafo, que recebeu o título de tirano do Jardim; Zeno de Sidônia, bem como Fedro, ouvido e estimado por Cícero; Siron, mestre de Virgílio, e Filodemo de Gádara, de cujos escritos partes importantes foram encontradas em Her culano.

— A fonte mais instrutiva para se conhecer o epicurismo é Lucrécio Caro (96-55 a. C).

Seu poema Sobre a Natureza pretende expor fielmente o atomismo de Demócrito, renovado por Epicuro. "Tu, ornamento do povo grego; primeiro a projetares uma radiante luz sobre a profunda escuridão e a mostrares a beleza da vida, a ti sigo-te eu passo a passo, não para rivalizar contigo, mas por querer imitar-te com amor e veneração”.

Por meio de Lucrécio, de novo, a Filosofia grega foi introduzida em Roma; e também o epicurismo foi um pensamento talhado para esse tipo espiritual, que é o homem fino da época de Virgílio, Mecenas, Horacio, Augusto.

Mas não foi só em Roma que Lucrécio introduziu o atomismo, pois também nele se inspirou a Filosofia moderna. E assim se entrelaçam, ainda uma vez, os arcos que prendem a antigüidade aos tempos modernos.



terça-feira, 19 de julho de 2011

A moral de Tartufo

A hipocrisia é a arte de amordaçar a dignidade; ela faz emudecer os escrúpulos nos espíritos incapazes de resistir à tentação do mal. É falta de virtude para renunciar a éste, e de coragem para assumir a sua responsabilidade.

É o guano que fecunda os temperamentos vulgares, permitindo-lhes prosperar na mentira: como essas árvores cuja ramagem é mais frondosa, quando crescem nas imediações dos lodaçais.

Gela, por onde ela passa, todo nobre germe de ideal: é o evento rijo e frio que destrói o entusiasmo. Os homens rebaixados pela hipocrisia vivem sem sonho, ocultando suas intenções, disfarçando seus sentimentos, dando saltos como uma fera; têm a íntima certeza, embora inconfessada, de que seus atos são indignos, vergonhosos, nocivos, arrufinados, irremissíveis.

Por isso, sua moral é dissolvente: envolve sempre uma simulação.

Os hipócritas não são impelidos por fé alguma; não suspeitam o valor das crenças retilíneas. Esquivam a responsabilidade das suas ações, são audazes, na traição, e, tímidos, na lealdade.

Conspiram, e agridem na sombra, espeçonhentas, e difamam com aveludada suavidade. Nunca ostentam um galardão inconfundível: cerram todas as frinchas do seu espírito, pelas quais poderia escapar-se, ou revelar-se, a sua personalidade nua, sem roupagem social da mentira.

É seu anelo simular as aptidões e qualidades que consideram vantajosas, para acentuar a sombra que projetam no seu cenário. Assim como os engenhos exíguos macaqueiam o talento intelectual, sobrecarregan-do-se de requintados artifícios, subterfúgios e defesas, os indivíduos de moralidade indecisa parodiam o talento moral, ouro pelando de virtude a sua insípida honestidade.

 Ignoram o veredicto do próprio tribunal interior; aspiram o salvo-conduto outorgado pelos cúmplices dos seus prejuízos convencionais.

O hipócrita costuma tirar vantagens da sua virtude, fingida, em maior proporção, do que o verdadeiro virtuoso. Pululam homens respeitados, somente porque ainda não foram descobertos sob sua máscara; bastaria penetrar na intimidade dos seus sentimentos, por um minuto apenas, para advertir a sua dobrez, e transformar, em desprêso, à estima.

O psicólogo reconhece o hipócrita; traços há que diferenciam o virtuoso do simulador; pois, enquanto este é um cúmplice das opiniões que fermentam em seu meio, aquele possui algum talento que lhe permite so-brepôr-se a elas.

Todo apetite pecuniário desperta a sua argúcia, e o impele a descobrir-se.

Não retrocede diante de artimanhas, é fácil às reverências fementidas, sabe farejar o despojo de amos, vende-se ao melhor ofertante, prospera à força de maranhas. Triunfa sobre os sinceros, toda vez que o êxito se estriba em aptidões vis: o homem real é. com freqüência, a sua vítima.

Cada Sócrates encontra a sua cicuta, e cada Cristo, o seu Judas. (José Ingenieros - 1877-1925)







quarta-feira, 29 de junho de 2011

A paixão nos mediocres

José Ingenieros (1877-1925)


A inveja é uma adoração que as sombras sentem pelos homens, que a mediocridade sente pelo mérito. É o rubor da face sonoramente esbofeteada pela gloria alheia. É a grilheta que os fracassados arrastam. É o áloc que os impotentes mastigam. É um humor veneno-no que se expele das feridas abertas pelo desengano da própria insignificância.
Por suas forças caudinas passam, cedo ou tarde, os que vivem como escravos da vaidade; desfilam, lívidos de angústia, trovos envergonhados da sua própria tristeza, sem suspeitarem que o seu ladrar envolve uma con sagração inequívoca do mérito alheio. A inextinguível hostilidade dos néscios sempre foi o pedestal de um mo numento.
É a mais ignóbil das torpes cicatrizes que afetam os carácteres vulgares. Aquele que inveja, rebaixa-se, sem o saber; confessa-se subalterno; esta paixão é o estig ma psicológico de uma humilhante inferioridade, senti da reconhecida.
Não basta ser inferior para invejar, pois todo ho mem o é de alguém, num sentido ou noutro; é necessá rio sofrer em conseqüência do bem alheio, da felicidade alheia, de qualquer enaltecimento alheio. Nesse sofrimento está o núcleo moral da inveja; morde o coração, como um ácido; carcome-o, como polilha; corrói, como a ferrugem, ao metal.
Das más paixões, nenhuma lhe leva vantagem. Plutarco dizia — e La Rochefoucauld o repete — que existem almas corrompidas até o ponto de se vangloriarem de vícios infames; mas nenhuma ainde teve a coragem de se confessar invejosa. Desconhecer a própria inveja, implicaria, ao mesmo tempo, declarar-se inferior ao invejado: trata-se de uma paixão tão abominável, tão universalmente detestada, que envergonha os mais impudicos, e se faz impossível para ocultá-la.
É surpreendente o fato de os psicólogos a terem esquecido em seus estudos sobre as paixões, limitando-se a mencioná-la como um caso particular do ciúme. Foi tão grande a sua difusão e a sua virulência, em todos os tempos, que já a mitologia grego-latina lhe atribuía origem sobrehumana, fazendo-a nascer das trevas noturnas.
O mito lhe empreta cara de velha horrivelmente fraca e exangue, com a cabeça cobreta de víboras, ao invés de cabelos. Seu olhar é torvo; seus olhos, fundos; os dentes, negros; a língua, untada com tóxicos fatais; com uma das mãos, agarra três serpentes, e, com a outra, uma hidra, ou uma teia; incuba, em seu seio, um monstruoso réptil que a devora continuamente e lhe instila o seu veneno; está agitada; não ri; nunca o sono fecha as pálpebras sobre os seus olhos irritados. Todo sucesso feliz a aflige, ou esporeia a sua angústia; destinada a sofrer, é o verdugo implacável de si mesma.
É a paixão traidora e propícia à hipocrisia. Está para o ódio, como a gazúa para a espada; empregam-na os que não podem competir com os invejados. Nos ímpetos de ódio, pode palpitar o gesto da garra que, num desesperado estremecimento, destroça e aniquila; no rep-to sobreptício da inveja, só se percebe o rastejar tímido daquele que procura morder o calcanhar.
Teofrasto julgou que a inveja se confunde com o ódio, ou nasce dele — opinião já enunciada por Aris tóteles, seu mestre. Plutarco ventilou a questão, preo ocupando-se com o estabelecimento de diferenças entre us duas paixões (Obras morais, II). Diz que, à primeira vista, se confundem; parecem brotar da maldade; quando se associam tornam-se mais fortes, como duas en fermidades que se complicam. Ambas sofrem em consequência do bem, e gostam do mal alheio; mas esta se melhança não basta para as confundir, se prestarmos atenção às suas diferenças. Só se odeia o que se julga mau u nocivo; ao contrário, toda prosperidade excita a inveja, como qualquer resplendor irrita os olhos en-fermos.
Podem-se odiar as coisas e os animais; só se pode invejar aos homens.



sexta-feira, 17 de junho de 2011

Pérolas chinesas de sabedoria

Inteligência Criadora, "é talvez o mais profundo de todos os homens". Êle olha o europeu — talvez com justiça — como um bárbaro. Os chineses têm uma teoria interessante a respeito da origem da raça humana. O Primeiro Homem, Pan Ku, modelou a forma do universo (assim dizem eles) há justamente, 2.231.000 anos. "Seu hálito tornou-se o vento, sua voz tornou-se o trovão, seus olhos tornaram-se o sol e a lua, seus cabelos tornaram-se a relva e as árvores, e seus parasitas tornaram-se a raça humana".
Os filósofos chineses, como vedes, têm um fino senso de humor. A seguinte anedota ilustrará melhor o rico sabor de seu humor. Um homem rico afogou-se no rio Wei. Seu corpo foi encontrado por um pescador, que exigiu enorme soma em paga. A família do afogado foi aconselhar-se com o famoso filósofo Teng Shih. "Não pagueis o que pede o pescador, aconselhou Teng. Êle entrará num acordo, porque nenhuma outra família desejará o corpo". Quando o pescador viu que não podia obter o preço que havia pedido, alarmou-se e foi também aconselhar-se com Teng. "Não abaixe seu preço, aconselhou Teng, ironicamente, files terão de chegar a uni acordo, porque nenhuma outra pessoa há de querer ficar com o corpo".

Ficamos sem saber qual o fim da história. Conta-se, porém, que a cabeça demasiado astuta de Teng foi finalmente removida de seu corpo, por ordem do rei.

Maior filósofo ainda que Teng Shih foi Lao-tze (seu nome significava Velho Mestre). Por mais estranho que pareça, sua filosofia era a condenação de toda a filosofia. O saber, dizia êle, não conduz necessariamente à virtude. Como prova, vê-se que um homem que sabe demais é geralmente um patife. "Quando renunciamos a saber, de-sembaraçamo-nos de nossas inquietações". Um avisado chefe ensinará seus comandados a serem simples e ignorantes. Quando o povo sabe demais, recusa-se a ser governado. Os chefes deverão evitar os conselheiros sábios. Somente saberão confundi-los e lançar seu país na desordem. "A nação mais feliz — dizia êle, e talvez também falasse ironicamente — é aquela que não tem livros, nem legistas, nem professores, mas somente negociantes e lavradores aldeões". O povo de tal país dar-se-á por contente com seu alimento inferior, suas roupas grosseiras e suas casas rústicas.

Lao-tze acreditava numa volta a natureza. Àdvoga-ya a virtude da vida simples. Era o Rousseau chinês. "O mais feliz dos homens é aquele que dominou sua ambição, e o mais sábio dos homens é aquele que reconheceu a loucura de seu saber". É devido em grande parte à filosofia de Lao-tze que os chineses permaneceram até hoje uma raça tão desambiciosa e, como muitos sustentam, tão sábia.

A filosofia de Lao-tze muito concorreu para moldar o caráter e o pensamento de Confúcio, um dos mais extraordinários mestres religiosos da história. Exerceu também profunda influência sobre o filósofo chinês, surgido mais tarde, Mo Ti. "É a ambição de poucos a responsável pelas desgraças de muitos" — observou Mo Ti. "O egoísmo está na base de todos os males. Por causa de seu egoísmo, o forte oprime o fraco, o rico esbulha o pobre, o nobre tiraniza o plebeu e o velhaco suplanta o ingênuo. É na verdade um estranho mundo esse em que vivemos", diz Mo Ti, em palavras que soam como se fossem pronunciadas em pleno século XX. "Neste nosso desconsertado mundo, se um homem rouba um porco, vai para a cadeia; se rouba um país, sobe a um trono".

De Mo Ti e Bernardo Shaw temos um hiato de mais de 2.000 anos. Contudo Shaw exprimiu quase exatamente a mesma idéia, com quase exatamente as mesmas palavras. O velho sábio chinês foi digno mestre do inteligente e moderno irlandês.




segunda-feira, 23 de maio de 2011

O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA

Texto de Luiz Antônio Simas

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto.

Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais. Na nova letra "o cravo encontrou a rosa debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada".

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha.

Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?

É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.

Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil.

Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.

Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado. Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa das bromélias o u coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magôo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado ? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão de chácara de baile infantil - de deficiente vertical .. O crioulo - vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) - só pode ser chamado de afrodescendente. O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia - aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo - outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão - é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais... Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar no olho do cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.

Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a "melhor idade".

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não.

Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto.

Abraços,
Luiz Antônio Simas

(Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de História do ensino médio).





sábado, 7 de maio de 2011

Ela chorou por bin Laden

Eu tenho uma amiga mulçumana.

Ela não usa burca nem se veste com o rigor de seus pares orientais. Ela está bastante ocidentalizada. Fala bem o português. É tradutora para o árabe. Vive na ponte aérea entre o Rio de Janeiro e São Paulo, sempre carregando uma penca de trabalhos acadêmicos, os quais são analisados por seus patrões editoriais, após verter de uma língua para outra.

Ela é apaixonada pelo Brasil.

Num ropante veio me ver em Natal. Chegou avisando com apenas algumas horas de antecedência. E ficou por apenas dois dias: um sábado e um domingo. Pagou o hotel, mas não ocupou o quarto. Me fez companhia todo o tempo. Foi minha hóspede em meu apartamento na Praia do Meio.

Nos conhecemos em Ribeirão Preto há muitos anos, e nos identificamos pelo amor à literatura. Aprendi muito com ela.

Em Natal comemos chambaril, escondidinho e paçoca. Andamos pelo litoral. Ponta Negra, Pium, São Miguel do Gostoso, Santa Rita e pelos bares da cidade, onde turista não anda, mas que eu conheço muito bem, depois de mais de duas décadas frequentando esta cidade.

Ela estava comigo quando a mídia capitalista fez a lambança ao anunciar o assassinato do terrorista Osama bin Laden. Nádia, então, chorou, chorou baixinho. Um choro comedido, silencioso, inédito e misterioso para mim. Não sei porque Nádia chorou. Se de tristeza, de alegria, não sei, confesso.

Mas é certo que Nádia chorou por bin Laden. Ou por sua morte.

"Os Estados Unidos satanizam o mundo e todos batem palmas. Por quê? Indagou. Não respondi. Nem saberia responder, pois ainda estava surpreso com suas lágrimas instantâneas. Ah, sim, estava. Mas ela insistiu: eles estão nas ruas de Nova Iorque comemorando, bestiais.

Pensei, então que talvez ela não chorasse por bin Laden, mas pela mediocridade americana. Então, eu disse:

- Não se perturbe por eles. A classe média americana é idotizada, burra, infeliz, fast food, shoppincenter 24 horas, ignorante, doente, massa de manobra de democratas e republicanos mais idiotizados ainda.

Não a confortei, pressenti. Mas ela sorriu engolindo as lágrimas que lhe passavam pelo canto da boca. E me disse:

- Amigo, não choro pelos americanos. Choro pela indecência. Pela demência humana. Não existe uma civilização humana, mas uma barbárie civilizada politicamente. A execução sumária é creditada na conta corrente dos ignorantes e aplaudida pelos países em geral. Não existem mais valores que podemos seguir. Eles todos são negados enquanto os cultivamos. Justiça e verdade são quimeras. O que nos resta é o caminho do egoísmo feliz.

Concordei.

Nádia foi ao banheiro e quando voltou pediu mais uma cerveja e mudou de assunto. Me deu notícias dos poetas paulistas e elogiou o meu primeiro romance, O Escaravelho da Floresta. Beliscou castanha de caju, bebericou e sorriu, como se nada estivesse acontecido.

Conversamos amenidade e fomos para casa. Antes de dormir me deu um beijo de boa noite e se dirigu para o quarto, enquanto eu me acomodava na rede da sala. Antes de dormir, porém, reapareceu com sua colorida roupa de deitar e me disse:

- Mas nem tudo está perdido, Stélio. O povo tomou as ruas no Oriente Médio.

Nádia, depois disso, então, dormiu como um anjo de Alá. 

sábado, 16 de abril de 2011

Toda brincadeira tem sempre um fundo de verdade





Sorri quando a dor te torturar

E a saudade atormentar

Os teus dias tristonhos vazios



Sorri quando tudo terminar

Quando nada mais restar

Do teu sonho encantador



Sorri quando o sol perder a luz

E sentires uma cruz

Nos teus ombros cansados doridos



Sorri vai mentindo a sua dor

E ao notar que tu sorris

Todo mundo irá supor

Que és feliz



O poema belamente musicado de Charles Chaplin, logo na abertura desta crônica, não deixa dúvida: nem toda brincadeira tem um fundo de verdade, mas existe brincadeira de verdade, ou seja, que é pura brincadeira mesma. Pelo menos é o que podemos apreender como em silogismo: a brincadeira é brincadeira, logo é verdade que é brincadeira.

O que o ditado, afinal, quer dizer é que pode existir alguma crítica, geralmente maledicente, em algumas brincadeiras. O que também ocorre de praxe. Não raro, as pessoas que não tem coragem de desembuchar suas verdades recalcadas ou suas invejas vergonhosas utilizam de subterfúgios para dizer uma coisa ou outra.

Também não é raro costumarmos dizer: quando tudo começou não passava de brincadeiras... Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando, falei muitas vezes como um palhaço, mas jamais duvidei da sinceridade da plateia que sorria, afirmou ainda o velho Chaplin.

Brincadeira e verdade, a rigor, não tem nada uma a ver com a outra. Mas não são objetos dissonantes, coisas que, como água e óleo, não se misturam. Estas se misturam, sim.

Tão pouco são implicitamente desassociativas.

Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma gargalhada! – prega Nietzsche. Logo ele, um sabedor que somente a alegria é o melhor remédio para que o homem possa suportar sua trágica existência.

Contudo, não creio que devamos levar ao pé da letra o ditado.

Isso seria uma enorme consideração com a brincadeira em si. Afinal, brincadeira tem limite. Quem não brinca não vive. Quem não tem a alegria dentro de si não pode ser uma pessoa feliz. Dentro do permitido circo trágico.

A brincadeira é o oxigênio das emoções humanas.

Nietzsche, em sua dor quase eterna, em vida, nunca deixou de fazer suas brincadeiras, algumas ferinas, mas sem pretensão de verdades absolutas, porque era um homem que abominava as convicções.

(...) foi o próprio Deus que ao fim de sua obra se disfarçou de serpente indo se deitar sob a árvore do conhecimento: assim ele se restabeleceu do fato de ser Deus... Ele havia feito tudo demasiadamente belo... Brincava, infantilmente, o filósofo.

O que agrava a existência humana nestes dias são as desconfianças, a selvageria do corre-corre que não permite gentilezas. Ou pelo menos desconfiamos delas. O mundo criou regras sob um capitalismo que ainda permanece selvagem em sua essência e arrasa vidas quando colide, grosseiramente, com as emoções.

Não por outra coisa, afirmo: para viver sob o capitalismo é necessário socializar as emoções.

Nele, é proibido brincar, parece.

As pessoas vivem dizendo verdades e mentiras com uma seriedade invejável. Portanto, não venham utilizar a brincadeira nessa concupiscência de sua vaidade sem sentido, e, muito menos, fazer da brincadeira um instrumento da sua maldade. Principalmente isso.

Que morram, pois, os que não sabem brincar! Pelo menos assim, somente teríamos crianças no mundo. As crianças brincam de verdade e seus olhos espelham a diversão feliz e inata da brincadeira pueril. Com seriedade.

Brinquemos em comum, crianças, adultos e velhos, numa ciranda enorme, com as mãos dadas e festejemos a alegria de viver, apesar da ignomínia humana. Que os homens jamais desaprendam que nunca se passa da hora de brincar!

Assim seremos mais gentis um com o outro.

Culpamos as pessoas das quais não gostamos pelas gentilezas que nos demonstram. Elogiamos ou criticamos de acordo com a maior oportunidade que o elogio ou a crítica oferecem para fazer brilhar a nossa capacidade de julgamento, escreveu Nietzsche, que completa: em certas pessoas, o alegrar-se com um elogio, é apenas uma delicadeza do coração - e precisamente o contrário de uma vaidade do espírito.

Podemos sim colocar a verdade onde quisermos - brincando ou taciturnamente - o que não podemos é deixar de por a verdade em nossa vida, como princípio; não podemos deixar de brincar sempre que pudermos e, principalmente, não podemos deixar de nos alegrar como norma de ser feliz.

O filósofo, como o entendo, é um explosivo terrível na presença do qual tudo está em perigo. Ao afirmar tais palavras, nosso filósofo se coloca acima dessa querela, e aposta que o pensador é uma metamorfose ambulante – como diria Raul Seixas – prestes a explodir, seja na brincadeira ou no que seja vero.

Por isso Nietzsche se dizia uma dinamite.

Ora, as brincadeiras embutidas de críticas (ou “verdades”, como queiram) apenas tem um sentido: emitir uma opinião covarde. Quem não tem confiança em si usa de maneira enviesada para se expressar. A covardia é dupla quando se usa a brincadeira.

Se temos que mudar de opinião a respeito de alguém levamos-lhe muito a mal o incômodo que assim nos causa. Essa é a explicação de Nietzsche para o caso. Nós, nos autodenunciamos quando mudamos o pensamento sobre o outrem.

A brincadeira disfarça. É uma desgraça.

Tudo é uma questão de valores. Seguir o que a sociedade podre exala de podridão é a lei. Moralidade é apenas o invólucro que o poder usa para saciar sua tara por mais poder.

Cobrem com falsa decência a indecência de seus valores.

Ter-se vergonha da sua imoralidade: é um degrau na escada em cujo extremo se tem também vergonha da nossa moralidade. Eis o que revela o profeta que desmistificou os valores. Mesmo assim, a podridão fede de longe.

E o homem comum se sujeita isso.

E faz da brincadeira um instrumento de sua submissão moral e intelectual

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O pior cego é o que não quer ver

Eis um ditado com profunda reflexão filosófica.
Talvez nenhum outro ofereça tantos ângulos de observações como este, que tem uma diversidade de facetas para todos os gostos; modos de apresentações diversificadas e que, mesmo assim, ainda dar de cara com o tipo que, simplesmente, não entende, não quer ver.

O vencido pela obtusidade. Este é o pior cego.

Quanto à origem do ditado, o mais corrente pelos quatro cantos do mundo enquanto visão enciclopédica é uma historieta que se revelou na Idade Média, na Europa, mas propriamente na velha França.

Sempre os franceses... E seus fricotes.

Contam os pesquisadores de abobrinhas que, em 1647, em Nimes, na França, onde existia uma universidade local de criteriosos estudos e grandes avanços, o doutor Vicent de Paul D`Argenrt fez o primeiro transplante de córnea em um aldeão de nome Angel.

Eram meados do século XVII.

Como não poderia deixar de ser, o acontecimento foi uma revolução e um enorme sucesso para a medicina da época. Estranhamente, menos para Angel, o aldeão, que, assim que passou a enxergar ficou horrorizado com o mundo que via.

Talvez esperasse outra coisa do que passou a ver.

Disse ele, por exemplo, que o mundo que imaginava era muito melhor. Mais estranhamente ainda, porém, ele pediu ao cirurgião que arrancasse seus olhos, e que o cegasse novamente. Insistia no pedido, com veemência.

Ele queria voltar a ser cego.

O caso foi acabar no tribunal de Paris e no Vaticano. Angel, o aldeão francês ganhou a causa e entrou para história como o cego que não quis ver. Provou que poderia viver sem ter que ver um mundo tão cruel. E assim ele viveu os restos de seus dias. Sem nada ver.

A história é muito bonita, embora mais pareça uma parábola.

Ela, entretanto, não corresponderia ao ditado, pois, no caso, Angel, o aldeão, não se trataria do pior cego, mas meramente um cego de bom coração que optou em não ver a excrescência humana. Ou então o pior cego pode ter um bom ou um mau coração, não importa, basta apenas desistir de ver, que será o pior.

"O homem procura um princípio em nome do qual possa desprezar o homem. Inventa outro mundo para poder caluniar e sujar este; de fato só capta o nada e faz desse nada um Deus, uma verdade, chamados a julgar e condenar esta existência."

O ensinamento acima, de Nietzsche, ilustra que não interessa o mundo em que vivamos, sempre vamos procurar botar defeito nele, criar deuses, inventar verdades, julgar e condenar as pessoas. Somente enxergamos neste mundo aquilo que desejamos enxergar, aquilo que nos interessa.

Passa-se com o homem o mesmo que com a árvore.

“Quanto mais quer crescer para o alto e para a claridade, tanto mais suas raízes tendem para a terra, para baixo, para a treva, para a profundeza - para o mal”, ilustra o ilustre bigodudo Nietzsche.

Outros opinam que esse tipo de homem que não quer ver, é que nem um avestruz que mete a cabeça no buraco para nada ver. Mas a verdade não é bem assim. Pelo menos sobre o avestruz, bastante injustiçado neste caso.

O avestruz não mete a cabeça no buraco para deixar de ver. Ou se esconder, mas para comer.

Ora, o avestruz é a maior ave do planeta, sempre carregou a fama de ser um animal frágil e medroso. Não é ele que, em desenhos animados ou histórias em quadrinhos, diante de qualquer dificuldade, corre para enterrar a cabeça em um buraco?

Pura lenda.

Esse comportamento, na verdade, não tem nada de covarde, mas é natural do bicho que passa grande parte do seu dia comendo. Os pesquisadores descobriram que, ao meter a cabeça num buraco, o avestruz não faz nada mais do que procurar algum tipo de roedor ou outro vertebrado para matar sua insaciável fome.

Portanto, não o usem como exemplo da cegueira ignorante que é própria do homem. Por isso é que Nietzsche nos alerta sobre essa inteligente questão:

- O homem que vê mal vê sempre menos do que aquilo que há para ver; o homem que ouve mal ouve sempre algo mais do que aquilo que há para ouvir. Assim, fica claro que a ótica humana, por ser subjetiva, é limitada e inconfiável.

Se o aldeão francês se recusou a ver tanta ignomínia sobre a terra, por que não buscou ver o seu oposto? Por que ignorou a arte? O teatro estava lá, a música tocava nos violinos, os versos varavam as madrugadas. Mas ele não quis saber de nada disso. Ele somente enxergou o mal, como mandava seu coração.

Tinha mais era que ficar cego mesmo, o bruto.

"Só como fenômeno estético a existência e o mundo aparecem eternamente justificados." Como fenômeno estético, pois, concebemos a própria arte. E a arte, para Nietzsche ajuda a suportar a vida. Mas, “há espíritos que escurecem suas águas para fazê-las parecer profundas”. Para esse estará sempre à mostra o trágico inerente à existência, sem que seu antídoto, a alegria possa ter a sua vez de ser contemplada, vivida. A alegria, o antídoto, para o trágico.

Cada um somente ver o que lhe convém, por isso Nietzsche afirmou:

- As paisagens insignificantes existem para os grandes paisagistas; as paisagens raras e notáveis são para os pequenos.

Em tudo, o infeliz prefere ver o desarranjo, a nevasca, a tempestade de areia e a inundação sinistra que mata o homem. O homem que não deseja enxergar a vida, apenas ver loucura em tudo, esquecendo-se que “nos indivíduos, a loucura é algo raro, mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra”, como observava Nietzsche.

Que enxerguemos, pois, todas as nuances da existência humana.

E que percebamos, por fim, que uma boa dose de loucura faz muito bem para a saúde. O que não faz bem às pessoas, de modo geral, é fazê-las enxergar um mundo imaginário e um deus invisível.

Mas isso, os tolos enxergam. Até o pior cego também, quero crer.

Não é por outra coisa que sou forçado a crer que, a rigor, o pior cego não é só exatamente aquele que não quer ver, mas também aquele que ver o que não existe. E pior, crer.

O cristão, por exemplo.