Mano Guilherme,
Tenho novidade. Na visita da Rosângela, de ontem à noite, pedi que entrasse em contato contigo, pois quero tuas opiniões como parte dessa experiência de vida.
Mas algo aconteceu.
Sem que esperasse, num repente, tiraram-me, às pressas da Unidade de Emergência. Trouxeram-me de lá e instalaram-me na UCO – Unidade Coronariana. Lá, eu estava num furdunço danado: um inferno de sofrimento humano. Sempre lotado de ais e angústias, em leitos espalhados por corredores e vãos estranhos. Sem dormir a noite inteira observava tudo aquilo.
Agora, aqui na UCO é um paraíso.
Literalmente. A Emergência é no térreo, a UCO no quarto andar, como na fábula cristã: um embaixo, outro em cima.
Deram-me um quarto todinho somente para mim.
A cama-maca é toda motorizada. Eu mesmo aperto os botões e me boto sentado, deitado, de cabeça para baixo e, se duvidar, até em posição vertical. Também, é possível manejar o leito fazendo descer as pernas.
Parece a cadeira do papai!
Tenho uma televisão na parede e um aparelho esquisito que monitora até o oxigênio que está a correr pelo meu sangue. Se é que ainda o tenho de tão vampirizado que estou sendo nesta vicissitude. Nos últimos vinte dias: dezenas de seringas chuparam meu sangue quase sem alternância.
A diferença de comodidade entre os dois locais é gritante.
Lá embaixo gritos de sofrimentos; aqui em cima um silêncio extremamente favorável ao ócio criativo. Deixo a TV ligada apenas para sentir vida ao meu redor. Espantar a solidão proporcionada pelo isolamento que se faz necessário.
Fico mais escrevendo sobre o que se passa comigo nesse enfrentamento, mexo em alguns capítulos do romance e na biografia do Barão Mesquita.
Meu bom compadre vivo uma sensação nova, estranha e desafiante, mas depois da mudança estou me sentindo mais ou menos assim: desalojaram-me da Hospedaria Camelo e transferiram-me para o Hotel Pinheiro.
Aliás, Guilherme, falando em besta, uma curiosidade que não devo deixar de registrar. Durante o atendimento de emergência, as enfermeiras, após constrangerem-me no depilamento das partes íntimas – coisa que me deixou ruborizado – também implantaram em meu pulso esquerdo uma coisa que chamam de acesso intravenoso, enquanto que no pulso direito enroscaram uma pulseira com um código de barras: agora sim, definitivamente, sou um número a mais na rua, no mundo e na vida.
Para instalar-me neste quadrante particular do quarto andar do Incor tive que, antes, higienizar-me no banheiro da Emergência. Minha mãe providenciara uma malinha com todos os apetrechos de limpeza pessoal, para esse tipo de serviço corporal que os franceses chamam de toalete.
No banho prolongado usava pouco xampu. Estou quase sem cabelo na cabeça. Mandei passar a máquina na rotação quatro. Por isso deixava a água quente correr sobre o curativo de plástico, gaze e algodão do cateterismo, na virilha.
Esperava que esse processo amolecesse as substâncias que grudavam à pele. Assim, ia retirando vagarosamente o curativo na tentativa de impedir o doer provocado pelo retiramento do material em contato com os pelos pubianos, sempre atrevidos.
Pasmei, Guilherme!
Quando por fim consegui retirar todo o curativo foi que percebi o inusitado: as enfermeiras passaram o barbeador apenas no lado direito de virilha, por onde foi introduzido o cateter.
Fiquei olhando aquela aparência estranha, e irritando-me com o que considerava uma sacanagem. Deveriam ter raspado tudo. Mas uma lembrança me fez ter uma acesso de riso sob a chuveirada confortante: raspar pela metade as minhas partes pudendas me fez lembrar a barba do Braga.
Que coisa esquisita!
O depilar incompleto fazia do meu pênis uma caricatura grotesca amparada pelo saco cabeludo! Agora, porém, mais tranquilo, é que estou me dando conta de algumas coisas, como, por exemplo, o número de identificação na minha pulseira de paciente: ID 3343666. Perceba, compadre, que os três últimos dígitos constituem o bíblico número da besta.
Moral da história: eu é que sou o besta! A exótica mula bíblica, a representação do mal humano. E bem identificado! Com direito à purgatório e chancela oficial.
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