Notícia ruim - para ser ruim de verdade - chega cedo.
A informação da morte de Armando Dantas não poderia ser
excessão: chegou bem cedo, logo pela manhã, no primeiro gole de café, e
trazendo consigo o fastio que nos obriga a dispensar a torrada, e nos desobriga
de continuar o desjejum regrado pela dieta que, por sua vez, tenta estender a
vida, que é curta.
A morte de um amigo entristece a nossa existência. Mais que
isso, pois, via de regra, uma notícia assim nos sacode como uma porrada na boca
do estômago, não como um susto anunciado. Mais ainda: faz a gente perceber a
nossa fragilidade e nos deixa menos duros, mais tolerante. E até mais
conformado com a própria morte, augúrio fatídico, pois, humano.
Mas, a morte de um amigo é também mais do que tristeza: é
lição definitiva.
De supetão, a gente traz à mente imagens de uma amizade
intermitente, e no meio delas, naturalmente, uma se sobressai. Uma lembrança
entre muitas sempre se destaca no enredo da memória e se estabelece de modo
permanente, algo assim como a Itabira de Drumonnd: um retrato na parede. Que
lembrança vou guardar do Armando?Apenas uma: a de um abraço.
Ou a história de um abraço, que seja.
O ano era o de 1980 e lá se vão 35 anos. Éramos jovens ainda.
Ele, um acreano de pé rachado fincado em Rio Branco. Eu, um estudante acreano
fincado em Ribeirão Preto. Em comum, a nossa infância no bairro da Base, onde vez
por outra, éramos botos matreiros. Aquela década era a de um tempo em que o
velho Ulysses Guimarães colocava um P no velho MDB, que fora abrigo de
sonhadores, muitos clandestinos. Era um tempo de reconstrução da democracia e
da União Nacional dos Estudantes, que voltara à legalidade. A UNE realizava em
Piracicaba um histórico congresso e todas as correntes políticas comuns ao
movimento se faziam presentes, ferozes entre si, numa disputa onde grupos que
viviam às turras, não raro, chegavam às vias de fato, o que era um prato
delicioso para a imprensa burguesa de então.
Como membro da delegação de estudantes paulistas, eu cheguei
ao congresso de Piracicaba travestido de trotiquista inveterado e sedento por
sangue stalinista. A recíproca era verdadeira. A tensão era convidada contumaz
nesses eventos!
Logo na abertura dos trabalhos, no ginásio de esportes da
cidade, não deixei de avistar um rosto que me pareceu familiar. Também não
demorei a perceber que era ninguém mais, ninguém menos que Armando Dantas, o
militante, não somente cercado de stalinistas, mas liderando-os! Incontinenti,
subi a arquibancada e cheguei até a delegação acreana, que ele capitaneava, e
me vi no meio do grupo pasmado, que me olhava sem nada entender. Eu olhava para
o Armando e ele para mim. Depois do reconhecimento mútuo, nos abraçamos,
festivos, como dois moleques de beira de rio, que corriam atrás de pepetas
cortadas. O abraço foi inoportuna, mas camarada. Apesar das trincheiras
distintas.
Aquele talvez tenha sido o único congresso da UNE, em que um
trotiquista e um stalinista se abraçaram, sem estarem brigando. Não que o Acre
esteja acima dessas querelas estudantis, mas aquele abraço revelou que uma boa
amizade de infância respeita os sonhos de cada um, mesmo os não compartilhados.
Anos depois a vida se encarregou de nos colocar na mesma trincheira.
E compartilhar os mesmos sonhos.
Na minha parede da memória, o retrato de Armando, entretanto,
não será o do dirigente partidário, do burocrata, do conspirador atuante, do
contador de histórias, do Baú dos amigos, do empresário, do peemedebista
tradicional ou do bom pai de família, e nem mesmo do homem adoentado dos
últimos anos. Não! Definitivamente não!
O quadro na minha parede será o do militante.
Terei dele, pois, a recordação do militante juvenil. Aquele
abraço revelara a ternura guevarista
que ele escondia por trás da sua voz de barítono trovejante, e desnudara a
lealdade política de sua postura de militante.
Sim, Armando Dantas era, antes de tudo, um militante.
Para ele, a militância era algo - essencialmente - de
natureza didática. E foi nela que ele estudou e aprendeu, construiu sua cátedra
e ensinou. Mas, principalmente, foi na militância que Armando Dantas forjou a
sua história. E nela viveu.
Adeus, camarada.
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