segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Meu oitavo livro: Rosalina, Meu Amor



“Não existem fatos. Apenas interpretações”.
Quiçá fosse minha esta afirmativa. Mas, não é.
O dito é de meu filósofo preferido, o alemão Friedrich Nietzsche, que tanto me ensinou nesta vida em que vivo a interpretar os mais diversos fatos. Na maioria das vezes procurando aproximação com a verdade, quando no ofício de informar, como manda a boa ética profissional. E de outras vezes, a mentir de modo compreensivo, apesar de despudorado quando na lida de escritor, como aconselha a boa arte criativa.
Nessa peleja, tenho partido dos fatos para criar as histórias de minhas publicações, o que me deixa quase sempre no meio do caminho, ou seja, entre um ofício e outro, entre a verdade e a mentira, entre a realidade e a ficção.
Narração ou interpretação dos fatos?
Eis a questão.
Para sair desta encruzilhada shakespeariana, que descamba dialeticamente para as necessidades intelectuais do ser ou não ser, sob os auspícios de uma boa taça de vinho, é que decidi sentar praça nesta trincheira em que se pode tanto mentir com maestria, como revelar verdades brutas ou lapidadas, com as licenças de direito.
É o caso deste Rosalina, Meu Amor que trata de um bárbaro crime ocorrido nos idos do Território Federal do Acre, ainda na primeira metade do século vinte, em 25 de novembro de 1941, que tanto chocou a diminuta população da provinciana capital do Acre, Rio Branco. O barbarismo do crime - revelador do desumano dentro do homem - fez sobreviver o caso na memória da geração antiga, a contadora desta história durante décadas.
Rosalina, uma professora de 19 anos, morena bonita e requintada, noiva de um piloto da FAB, fora assassinada a peixeirada pelo presidiário Lázaro Nunes, que por ela se apaixonara. Detalhe: ela nunca soube desta paixão e, sequer, sabia da existência do sujeito. A trama, descobriu-se mais tarde, teve um autor intelectual que articulou até mesmo uma suposta troca de cartas - cartas de amor.
Cresci ouvindo essa história.
Agora, resolvi contá-la.
Para tanto debrucei-me sobre o processo do caso com quase mil folhas - entre manuscritas e datilografadas -, para melhor inteirar-me de todas as nuances do cruel assassinato. Daí, adianto que todos os fatos e personagens aqui apresentados são verdadeiros, sem tirar nem por. Toda a história é gritantemente real. Ao escrevê-la segui a realidade.
Alguém pode perguntar: então, onde está a ficção?
Na interpretação, respondo.
Para escrever a história - do meu jeito - troquei o bairro do Bosque, em Rio Branco, pela Praia do Meio, em Natal, onde o sol, o mar e o vento constante são por demais inspiradores. E o que começou como um romance terminou como uma novela.
Mas advirto que, pela forma da elaboração do texto, o leitor inteligente deverá fazer duas leituras diferenciadas deste livro: a primeira é a tradicional, ou seja, de cabo a rabo, que é a interpretação do fato, e a segunda, lendo apenas a parte em itálico, que é o fato em si.
Sendo assim proporciono duas visões - ou interpretações, como queiram - de um mesmo fato, em apenas um livro. Isto por que procurei ir além do olhar afirmativo de Nietzsche e juntei num só lugar, o fato e a sua interpretação.
O caso merecia.
E para completar, as colaborações de Moura Neto e Adriano Sousa fizeram o resto. De lambuja ganhei a compreensão de situar a minha lida literária entre o ser e o não ser, entre a verdade e a mentira, entre o fato e a sua interpretação.
Ou, simplesmente, o melhor jeito - que cada um acha por si mesmo - de se expressar na vida.

PÉROLAS BUDISTAS



O Mistério do Zen


Certa vez, Huang Shan-ku perguntou ao mestre Hui-t'ang:
"Por favor, Mestre, diga-me qual é o significado oculto do Buddhismo?"
O Mestre replicou:
"Kung-Tzu (Confúcio) disse: 'Pensais que estou escondendo coisas, ó meus discípulos? Na verdade, não escondo nada de vocês'. O Zen também não tem nada de oculto. A Verdade já está revelada."
"Não enten...!" estava dizendo o homem. Mas o mestre fez um gesto de silêncio e disse:
"Não digas nada!"
Huang Shan-ku ficou confuso. O Mestre então ergueu-se e convidou-o a seguí-lo até o sopé de uma montanha. Eles caminharam em silêncio. Lá chegando, o Mestre perguntou:
"Sentes o suave aroma dos ciprestes?"
"Sim," disse o outro.
"Como vês, também eu não escondo nada de ti."




O tesouro em casa


Um dia, um jovem chamado Yang Fu deixou sua família e lar para ir a Sze-Chuan visitar o Bodhisattva Wu-Ji. Ele sonhou que junto àquele mestre poderia encontrar um grande tesouro de sabedoria. Quando já se encontrava às portas da cidade, após uma longa viajem cheia de aventuras, encontrou um velho senhor.
Este lhe perguntou:
"Onde vais, jovem?"
"Vou estudar com Wu-Ji, o Bodhisattva." - respondeu o rapaz.
"Em vez de buscar um Bodhisattva, é mais maravilhoso encontrar Buddha."
Excitado com a perspectiva de encontrar o Grande Mestre, disse Yang Fu:
"Oh! Sabes onde encontrá-lo?!"
"Voltes para casa agora mesmo. Quando lá chegares, encontrarás uma pessoa usando uma manta e chinelos trocados, que lhe cumprimentará. Essa pessoa é o Buddha."
O rapaz pensou, aterrado: "Como posso retornar agora, quando estou às portas do meu objetivo? Eu teria que confiar muito no que este simples velho me diz".
Então Yang Fu teve uma forte intuição de que aquele simples homem à sua frente era alguém de grande sabedoria. Num impulso, voltou-se para a estrada, sem jamais ter encontrado Wu-Ji. Ele retornou o mais rápido que pode, ansioso pela vontade de encontrar Buddha.
Chegou em casa tarde da noite, e sua amorosa mãe, em meio à alegria e pressa de abraçar o filho que retornava ao lar, cobriu-se de uma manta usada e calçou seus chinelos trocados.
Olhando para sua mãe desse modo, que vinha sorrindo e pronta a abraçá-lo, Yang Fu atingiu o Satori. Este era o maior tesouro.

terça-feira, 16 de junho de 2015

ADEUS, VELHO CAMARADA!



 
Notícia ruim - para ser ruim de verdade - chega cedo.

A informação da morte de Armando Dantas não poderia ser excessão: chegou bem cedo, logo pela manhã, no primeiro gole de café, e trazendo consigo o fastio que nos obriga a dispensar a torrada, e nos desobriga de continuar o desjejum regrado pela dieta que, por sua vez, tenta estender a vida, que é curta.

 
A morte de um amigo entristece a nossa existência. Mais que isso, pois, via de regra, uma notícia assim nos sacode como uma porrada na boca do estômago, não como um susto anunciado. Mais ainda: faz a gente perceber a nossa fragilidade e nos deixa menos duros, mais tolerante. E até mais conformado com a própria morte, augúrio fatídico, pois, humano.

 
Mas, a morte de um amigo é também mais do que tristeza: é lição definitiva.

 
De supetão, a gente traz à mente imagens de uma amizade intermitente, e no meio delas, naturalmente, uma se sobressai. Uma lembrança entre muitas sempre se destaca no enredo da memória e se estabelece de modo permanente, algo assim como a Itabira de Drumonnd: um retrato na parede. Que lembrança vou guardar do Armando?Apenas uma: a de um abraço.

 
Ou a história de um abraço, que seja.

 
O ano era o de 1980 e lá se vão 35 anos. Éramos jovens ainda. Ele, um acreano de pé rachado fincado em Rio Branco. Eu, um estudante acreano fincado em Ribeirão Preto. Em comum, a nossa infância no bairro da Base, onde vez por outra, éramos botos matreiros. Aquela década era a de um tempo em que o velho Ulysses Guimarães colocava um P no velho MDB, que fora abrigo de sonhadores, muitos clandestinos. Era um tempo de reconstrução da democracia e da União Nacional dos Estudantes, que voltara à legalidade. A UNE realizava em Piracicaba um histórico congresso e todas as correntes políticas comuns ao movimento se faziam presentes, ferozes entre si, numa disputa onde grupos que viviam às turras, não raro, chegavam às vias de fato, o que era um prato delicioso para a imprensa burguesa de então.

 
Como membro da delegação de estudantes paulistas, eu cheguei ao congresso de Piracicaba travestido de trotiquista inveterado e sedento por sangue stalinista. A recíproca era verdadeira. A tensão era convidada contumaz nesses eventos!

 
Logo na abertura dos trabalhos, no ginásio de esportes da cidade, não deixei de avistar um rosto que me pareceu familiar. Também não demorei a perceber que era ninguém mais, ninguém menos que Armando Dantas, o militante, não somente cercado de stalinistas, mas liderando-os! Incontinenti, subi a arquibancada e cheguei até a delegação acreana, que ele capitaneava, e me vi no meio do grupo pasmado, que me olhava sem nada entender. Eu olhava para o Armando e ele para mim. Depois do reconhecimento mútuo, nos abraçamos, festivos, como dois moleques de beira de rio, que corriam atrás de pepetas cortadas. O abraço foi inoportuna, mas camarada. Apesar das trincheiras distintas.

 
Aquele talvez tenha sido o único congresso da UNE, em que um trotiquista e um stalinista se abraçaram, sem estarem brigando. Não que o Acre esteja acima dessas querelas estudantis, mas aquele abraço revelou que uma boa amizade de infância respeita os sonhos de cada um, mesmo os não compartilhados. Anos depois a vida se encarregou de nos colocar na mesma trincheira.

 
E compartilhar os mesmos sonhos.

 
Na minha parede da memória, o retrato de Armando, entretanto, não será o do dirigente partidário, do burocrata, do conspirador atuante, do contador de histórias, do Baú dos amigos, do empresário, do peemedebista tradicional ou do bom pai de família, e nem mesmo do homem adoentado dos últimos anos. Não! Definitivamente não!

 
O quadro na minha parede será o do militante.

 
Terei dele, pois, a recordação do militante juvenil. Aquele abraço revelara a ternura guevarista que ele escondia por trás da sua voz de barítono trovejante, e desnudara a lealdade política de sua postura de militante.

 
Sim, Armando Dantas era, antes de tudo, um militante.

 
Para ele, a militância era algo - essencialmente - de natureza didática. E foi nela que ele estudou e aprendeu, construiu sua cátedra e ensinou. Mas, principalmente, foi na militância que Armando Dantas forjou a sua história. E nela viveu.

 
Adeus, camarada.