quarta-feira, 29 de junho de 2011

A paixão nos mediocres

José Ingenieros (1877-1925)


A inveja é uma adoração que as sombras sentem pelos homens, que a mediocridade sente pelo mérito. É o rubor da face sonoramente esbofeteada pela gloria alheia. É a grilheta que os fracassados arrastam. É o áloc que os impotentes mastigam. É um humor veneno-no que se expele das feridas abertas pelo desengano da própria insignificância.
Por suas forças caudinas passam, cedo ou tarde, os que vivem como escravos da vaidade; desfilam, lívidos de angústia, trovos envergonhados da sua própria tristeza, sem suspeitarem que o seu ladrar envolve uma con sagração inequívoca do mérito alheio. A inextinguível hostilidade dos néscios sempre foi o pedestal de um mo numento.
É a mais ignóbil das torpes cicatrizes que afetam os carácteres vulgares. Aquele que inveja, rebaixa-se, sem o saber; confessa-se subalterno; esta paixão é o estig ma psicológico de uma humilhante inferioridade, senti da reconhecida.
Não basta ser inferior para invejar, pois todo ho mem o é de alguém, num sentido ou noutro; é necessá rio sofrer em conseqüência do bem alheio, da felicidade alheia, de qualquer enaltecimento alheio. Nesse sofrimento está o núcleo moral da inveja; morde o coração, como um ácido; carcome-o, como polilha; corrói, como a ferrugem, ao metal.
Das más paixões, nenhuma lhe leva vantagem. Plutarco dizia — e La Rochefoucauld o repete — que existem almas corrompidas até o ponto de se vangloriarem de vícios infames; mas nenhuma ainde teve a coragem de se confessar invejosa. Desconhecer a própria inveja, implicaria, ao mesmo tempo, declarar-se inferior ao invejado: trata-se de uma paixão tão abominável, tão universalmente detestada, que envergonha os mais impudicos, e se faz impossível para ocultá-la.
É surpreendente o fato de os psicólogos a terem esquecido em seus estudos sobre as paixões, limitando-se a mencioná-la como um caso particular do ciúme. Foi tão grande a sua difusão e a sua virulência, em todos os tempos, que já a mitologia grego-latina lhe atribuía origem sobrehumana, fazendo-a nascer das trevas noturnas.
O mito lhe empreta cara de velha horrivelmente fraca e exangue, com a cabeça cobreta de víboras, ao invés de cabelos. Seu olhar é torvo; seus olhos, fundos; os dentes, negros; a língua, untada com tóxicos fatais; com uma das mãos, agarra três serpentes, e, com a outra, uma hidra, ou uma teia; incuba, em seu seio, um monstruoso réptil que a devora continuamente e lhe instila o seu veneno; está agitada; não ri; nunca o sono fecha as pálpebras sobre os seus olhos irritados. Todo sucesso feliz a aflige, ou esporeia a sua angústia; destinada a sofrer, é o verdugo implacável de si mesma.
É a paixão traidora e propícia à hipocrisia. Está para o ódio, como a gazúa para a espada; empregam-na os que não podem competir com os invejados. Nos ímpetos de ódio, pode palpitar o gesto da garra que, num desesperado estremecimento, destroça e aniquila; no rep-to sobreptício da inveja, só se percebe o rastejar tímido daquele que procura morder o calcanhar.
Teofrasto julgou que a inveja se confunde com o ódio, ou nasce dele — opinião já enunciada por Aris tóteles, seu mestre. Plutarco ventilou a questão, preo ocupando-se com o estabelecimento de diferenças entre us duas paixões (Obras morais, II). Diz que, à primeira vista, se confundem; parecem brotar da maldade; quando se associam tornam-se mais fortes, como duas en fermidades que se complicam. Ambas sofrem em consequência do bem, e gostam do mal alheio; mas esta se melhança não basta para as confundir, se prestarmos atenção às suas diferenças. Só se odeia o que se julga mau u nocivo; ao contrário, toda prosperidade excita a inveja, como qualquer resplendor irrita os olhos en-fermos.
Podem-se odiar as coisas e os animais; só se pode invejar aos homens.



sexta-feira, 17 de junho de 2011

Pérolas chinesas de sabedoria

Inteligência Criadora, "é talvez o mais profundo de todos os homens". Êle olha o europeu — talvez com justiça — como um bárbaro. Os chineses têm uma teoria interessante a respeito da origem da raça humana. O Primeiro Homem, Pan Ku, modelou a forma do universo (assim dizem eles) há justamente, 2.231.000 anos. "Seu hálito tornou-se o vento, sua voz tornou-se o trovão, seus olhos tornaram-se o sol e a lua, seus cabelos tornaram-se a relva e as árvores, e seus parasitas tornaram-se a raça humana".
Os filósofos chineses, como vedes, têm um fino senso de humor. A seguinte anedota ilustrará melhor o rico sabor de seu humor. Um homem rico afogou-se no rio Wei. Seu corpo foi encontrado por um pescador, que exigiu enorme soma em paga. A família do afogado foi aconselhar-se com o famoso filósofo Teng Shih. "Não pagueis o que pede o pescador, aconselhou Teng. Êle entrará num acordo, porque nenhuma outra família desejará o corpo". Quando o pescador viu que não podia obter o preço que havia pedido, alarmou-se e foi também aconselhar-se com Teng. "Não abaixe seu preço, aconselhou Teng, ironicamente, files terão de chegar a uni acordo, porque nenhuma outra pessoa há de querer ficar com o corpo".

Ficamos sem saber qual o fim da história. Conta-se, porém, que a cabeça demasiado astuta de Teng foi finalmente removida de seu corpo, por ordem do rei.

Maior filósofo ainda que Teng Shih foi Lao-tze (seu nome significava Velho Mestre). Por mais estranho que pareça, sua filosofia era a condenação de toda a filosofia. O saber, dizia êle, não conduz necessariamente à virtude. Como prova, vê-se que um homem que sabe demais é geralmente um patife. "Quando renunciamos a saber, de-sembaraçamo-nos de nossas inquietações". Um avisado chefe ensinará seus comandados a serem simples e ignorantes. Quando o povo sabe demais, recusa-se a ser governado. Os chefes deverão evitar os conselheiros sábios. Somente saberão confundi-los e lançar seu país na desordem. "A nação mais feliz — dizia êle, e talvez também falasse ironicamente — é aquela que não tem livros, nem legistas, nem professores, mas somente negociantes e lavradores aldeões". O povo de tal país dar-se-á por contente com seu alimento inferior, suas roupas grosseiras e suas casas rústicas.

Lao-tze acreditava numa volta a natureza. Àdvoga-ya a virtude da vida simples. Era o Rousseau chinês. "O mais feliz dos homens é aquele que dominou sua ambição, e o mais sábio dos homens é aquele que reconheceu a loucura de seu saber". É devido em grande parte à filosofia de Lao-tze que os chineses permaneceram até hoje uma raça tão desambiciosa e, como muitos sustentam, tão sábia.

A filosofia de Lao-tze muito concorreu para moldar o caráter e o pensamento de Confúcio, um dos mais extraordinários mestres religiosos da história. Exerceu também profunda influência sobre o filósofo chinês, surgido mais tarde, Mo Ti. "É a ambição de poucos a responsável pelas desgraças de muitos" — observou Mo Ti. "O egoísmo está na base de todos os males. Por causa de seu egoísmo, o forte oprime o fraco, o rico esbulha o pobre, o nobre tiraniza o plebeu e o velhaco suplanta o ingênuo. É na verdade um estranho mundo esse em que vivemos", diz Mo Ti, em palavras que soam como se fossem pronunciadas em pleno século XX. "Neste nosso desconsertado mundo, se um homem rouba um porco, vai para a cadeia; se rouba um país, sobe a um trono".

De Mo Ti e Bernardo Shaw temos um hiato de mais de 2.000 anos. Contudo Shaw exprimiu quase exatamente a mesma idéia, com quase exatamente as mesmas palavras. O velho sábio chinês foi digno mestre do inteligente e moderno irlandês.