segunda-feira, 23 de maio de 2011

O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA

Texto de Luiz Antônio Simas

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto.

Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais. Na nova letra "o cravo encontrou a rosa debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada".

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha.

Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?

É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.

Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil.

Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.

Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado. Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa das bromélias o u coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magôo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado ? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão de chácara de baile infantil - de deficiente vertical .. O crioulo - vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) - só pode ser chamado de afrodescendente. O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia - aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo - outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão - é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais... Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar no olho do cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.

Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a "melhor idade".

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não.

Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto.

Abraços,
Luiz Antônio Simas

(Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de História do ensino médio).





sábado, 7 de maio de 2011

Ela chorou por bin Laden

Eu tenho uma amiga mulçumana.

Ela não usa burca nem se veste com o rigor de seus pares orientais. Ela está bastante ocidentalizada. Fala bem o português. É tradutora para o árabe. Vive na ponte aérea entre o Rio de Janeiro e São Paulo, sempre carregando uma penca de trabalhos acadêmicos, os quais são analisados por seus patrões editoriais, após verter de uma língua para outra.

Ela é apaixonada pelo Brasil.

Num ropante veio me ver em Natal. Chegou avisando com apenas algumas horas de antecedência. E ficou por apenas dois dias: um sábado e um domingo. Pagou o hotel, mas não ocupou o quarto. Me fez companhia todo o tempo. Foi minha hóspede em meu apartamento na Praia do Meio.

Nos conhecemos em Ribeirão Preto há muitos anos, e nos identificamos pelo amor à literatura. Aprendi muito com ela.

Em Natal comemos chambaril, escondidinho e paçoca. Andamos pelo litoral. Ponta Negra, Pium, São Miguel do Gostoso, Santa Rita e pelos bares da cidade, onde turista não anda, mas que eu conheço muito bem, depois de mais de duas décadas frequentando esta cidade.

Ela estava comigo quando a mídia capitalista fez a lambança ao anunciar o assassinato do terrorista Osama bin Laden. Nádia, então, chorou, chorou baixinho. Um choro comedido, silencioso, inédito e misterioso para mim. Não sei porque Nádia chorou. Se de tristeza, de alegria, não sei, confesso.

Mas é certo que Nádia chorou por bin Laden. Ou por sua morte.

"Os Estados Unidos satanizam o mundo e todos batem palmas. Por quê? Indagou. Não respondi. Nem saberia responder, pois ainda estava surpreso com suas lágrimas instantâneas. Ah, sim, estava. Mas ela insistiu: eles estão nas ruas de Nova Iorque comemorando, bestiais.

Pensei, então que talvez ela não chorasse por bin Laden, mas pela mediocridade americana. Então, eu disse:

- Não se perturbe por eles. A classe média americana é idotizada, burra, infeliz, fast food, shoppincenter 24 horas, ignorante, doente, massa de manobra de democratas e republicanos mais idiotizados ainda.

Não a confortei, pressenti. Mas ela sorriu engolindo as lágrimas que lhe passavam pelo canto da boca. E me disse:

- Amigo, não choro pelos americanos. Choro pela indecência. Pela demência humana. Não existe uma civilização humana, mas uma barbárie civilizada politicamente. A execução sumária é creditada na conta corrente dos ignorantes e aplaudida pelos países em geral. Não existem mais valores que podemos seguir. Eles todos são negados enquanto os cultivamos. Justiça e verdade são quimeras. O que nos resta é o caminho do egoísmo feliz.

Concordei.

Nádia foi ao banheiro e quando voltou pediu mais uma cerveja e mudou de assunto. Me deu notícias dos poetas paulistas e elogiou o meu primeiro romance, O Escaravelho da Floresta. Beliscou castanha de caju, bebericou e sorriu, como se nada estivesse acontecido.

Conversamos amenidade e fomos para casa. Antes de dormir me deu um beijo de boa noite e se dirigu para o quarto, enquanto eu me acomodava na rede da sala. Antes de dormir, porém, reapareceu com sua colorida roupa de deitar e me disse:

- Mas nem tudo está perdido, Stélio. O povo tomou as ruas no Oriente Médio.

Nádia, depois disso, então, dormiu como um anjo de Alá.