Compadre Guilherme,
A Paulicéia Desvairadaminha amanheceu mais do que típica neste domingo: fria e salpicando sua garoa em rostos indistintos, que se aventuravam em busca de lugares aconchegantes para passar o tempo. Inclusive, no meu e de Rosângela, que - acompanha-me nesta desdita - fomos parar no shopping mais próximo de onde estamos alojados, uma casinha na Sílvio Sacramento, em Pinheiros, com facilidade de acesso ao Instituto do Coração, o Incor, meu destino almejado.
Por questão de comodidade esse bairro é o ideal. Daí não ser possível ficar hospedado em casa de nosso irmão caçula, o Rossini, que mora e trabalha na Zona Oeste da cidade. Ele é professor e fez uma belíssima dissertação de Mestrado sobro o nosso querido Hélio Melo.
Temos aqui, Guilherme, um filósofo candidto a deputado federal. Trata-se de Gabriel Chalita.
Dormimos bem, pois de igual mourejo foi a viagem de Rio Branco até Sampa.
Como testemunhastes, a semana para mim foi muito penosa, realmente sofrida. "Agora posso me gabar que tive o primeiro infarto". Essa frase cairia muito bem no humor do Élson Sombreira, digo, Dantas. Mas, a verdade é que o primeiro infarto a gente nunca esquece.
E como dói.
Assim, compadre, juntamente com minha irmã perdi o dia de domingo a passos lentos, numa galeria paulistana onde almocei e adquiri um agasalho, já que sou desprevenido quanto ao clima daqui, daí e alhures. Aliás, meu fardamento sempre foi camiseta, jeans a alpargatas. Se bem que desta vez estou usando um tênis. Coisa rara, claro. O interessante Guilherme, é que se trata do tênis que me destes. Uso-o em tua homenagem. E, por tabela, à comadre, Nísio e Sofia, meu segundo exército.
A eles, membros de meu contingente amado, o meu beijo saudoso. A comadre me orgulha muito pelas responsabilidades que assume; a Sofia a destruir corações, enquanto o Nísio já disse a que veio: fala o que quer e o que lhe dá na telha. Bruto ou angelical, ele exala amor. Pelos poros. Será um grande guerreiro, sem dúvida, puramente amazônico.
Uma sina interessante surpreendeu-me.
E foi motivo da conversa do domingo. A casa que me hospeda hoje na Sílvio Sacramento – uma ruazinha estreita de paralelepípedos – entre a Cardeal Arcoverde e a Teodoro Sampaio, compadre, foi onde me acolheram na madrugada de 28 de novembro de 1983 - depois de participar, com um grupo de estudantes de Ribeirão Preto - do primeiro comício do movimento Diretas, Já!
Foi no dia 27 de novembro de 1983, que quinze mil pessoas se reuniram no comício organizado pelo PT na Praça Charles Miller, em frente do estádio do Pacaembu, exigindo o retorno às eleições diretas para presidente. Lula surgiu politicamente nesse comício, deixando de ser apenas um simples sindicalista do ABC paulista.
Conforme se encontra fartamente registrado, ali era o início da campanha das Diretas Já!, a maior mobilização política e popular da história brasileira que, se não alcançou seus objetivos de imediato, ajudou profundamente a reconstruir a democracia no Brasil. A idéia de criar um movimento a favor de eleições diretas foi lançada, em 1983, pelo então senador Teotônio Vilela no programa Canal Livre da TV Bandeirantes.
A manifestação contou com representantes de diversas correntes políticas e de pensamento, unidas pelo desejo de eleições diretas para presidente da República. Muitos políticos da situação, sensíveis às suas bases, também formaram um bloco de dissidência no Partido Democrático Social (PDS), ex-Arena, o partido situacionista. Pesquisando, enriqueço esta carta a meu compadre com mais informações: a essa altura, a perda de prestígio do regime militar junto à população era grande. Militares de baixo escalão, com seus salários corroídos pela inflação, começavam a pressionar seus comandantes - que também estavam descontentes.
Lideranças - O movimento agregou diversos setores da sociedade brasileira. Participaram inúmeros partidos políticos de oposição ao regime ditatorial, além de lideranças sindicais, civis, artísticas, estudantis e jornalísticas. Dentre os políticos, destacaram-se Tancredo Neves, Leonel Brizola, Miguel Arraes, José Richa, Ulysses Guimarães, André Franco Montoro, Dante de Oliveira, Mário Covas, Gérson Camata, Orestes Quércia, Carlos Bandeirense Mirandópolis, Luiz Inácio Lula da Silva, Eduardo Suplicy, Roberto Freire, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros.
A cantora paraense Fafá de Belém participou ativamente no movimento das Diretas Já a partir do comício de 16 de Abril de 1984. Fafá se apresentou gratuitamente em diversos comícios e passeatas, cantando de forma magistral e muito original, de entre outros temas, o "Hino Nacional Brasileiro", gravado no seu álbum Aprendizes da Esperança, lançado no ano seguinte. A célebre interpretação, diante das câmeras, para uma multidão que clamava pela redemocratização do país, foi muito contestada pela Justiça, mas ao mesmo tempo, foi ovacionada e aclamada pelo público.
A emenda - Dante de Oliveira, eleito deputado federal em 1982 pelo PMDB, assumiu em 1 de janeiro de 1983 e desde então começou a coletar as assinaturas para apresentar o projeto de emenda constitucional que estabelecia eleições diretas (170 assinaturas de deputados e 23 de senadores). No dia 2 de março de 1983 finalmente apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 5.
O Acre não ficou de fora desse movimento e relizou um ato, em fevereiro de 1984 que reuniu mais de sete mil pessoas, um número significativo para a nossa terra. Como morava em Ribeirão Preto, nesse período, participei do movimento fora de meu ntorrão acreano.
Em 25 de abril de 1984, sob grande expectativa dos brasileiros, a emenda das eleições diretas foi votada, obtendo 298 votos a favor, 65 contra e 3 abstenções. Devido a uma manobra de políticos aliados ao regime, não compareceram 112 deputados ao plenário da Câmara dos Deputados no dia da votação. A emenda foi rejeitada por não alcançar o número mínimo de votos para a sua aprovação.
Nesta época tive também o privilégio de conhecer Henfil, que se envolvia com cinema, teatro, televisão (trabalhou na Rede Globo, como redator do extinto programa TV Mulher) e literatura, mas ficou marcado mesmo por sua atuação nos movimentos sociais e políticos brasileiros. Ele tentou seguir carreira nos Estados Unidos, mas não teve lugar nos tradicionais jornais estadunidenses, sendo renegado a publicações underground. Ele então retornou ao Brasil, publicando mais um livro. Após uma transfusão de sangue acabou contraindo o vírus da AIDS. Ele faleceu vítima das complicações da doença no auge de sua carreira, com seu trabalho aparecendo nas principais revistas brasileiras.
Mas, meu bom compadre, manterei contato. E notícias.
Um abraço.