sábado, 7 de agosto de 2010

A visão política de Aristóteles

Sabemos que a maioria dos pensadores, entre os que figuram como expoentes do conhecimento na antiguidade, sem dúvida, formulou uma filosofia política, cada um à sua maneira, evidentemente. E quando falamos de Aristóteles, como não poderia deixar de ser, a coisa não foi diferente. Aristóteles, a rigor, foi o primeiro filósofo que pensou a política como uma ciência, ou seja, ele elaborou seu pensamento sob um ponto de vista profundamente científico. Nesse quesito, inclusive, é bom salientar que ele também agiu assim em relação a todos os temas que abordou em seus estudos. Aliás, entre as ciências alvos da preocupação do fundador do Liceu, duas, pelo menos, ele chamou de “práticas”. Nesse campo ele definiu justamente a ética e a política como as mais importantes disciplinas da própria filosofia, pois eram as ciências das coisas humanas. E não é por outra coisa que, encontramos as respostas de Aristóteles aos problemas sociais da humanidade, em Política, seu tratado sobre o tema que, surpreendentemente, ainda hoje se constitui num clássico da filosofia política. Para muitos estudiosos da obra aristotélica, os oitos livros em que se compõe o tratado, tanto nos textos considerados “realistas” como “idealistas”, e ainda as preciosas informações históricas e as análises sociológicas, se constituem também – e principalmente – numa verdadeira e impressionante “antropologia filosófica”. Se, na visão platônica, o conhecimento era um corpo indivisível, cabal e único, além de posse exclusiva do filósofo, dando apenas a este a capacidade de governar a cidade, para Aristóteles a coisa era bem diferente. Por diferenciar as ciências em teóricas e práticas, Aristóteles também fazia alusão ao homem sábio e ao homem prudente, dando a cada um deles, funções mais apropriadas, ou seja, o sábio cuidaria mais dos problemas teóricos, enquanto que o prudente atuaria com mais desenvoltura no domínio da ação. Assim, estabelecendo um confronto direto com seu mestre, Aristóteles, por conseqüência de sua proposição, então, concede, não ao filósofo, mas ao legislador (nomothéte), o principal papel no domínio político. Caberá, portanto, ao legislador, segundo Aristóteles, determinar a forma de constituição que melhor convém a uma determinada cidade, como também quais as instituições mais necessárias para reger o grupo social ali estabelecido. É que o estagirita concebia que se o legislador é bom, as leis serão boas, e se estas assim o são, a vida será virtuosa e terá como efeito os bons costumes, já que as leis justas instalam a virtude nos habitantes da cidade. Mas isto não significa dizer que apenas uma forma legislativa é válida para todas as cidades. Aliás, é bom ressaltar que esse é um dos pontos fundamentais da concepção política aristotélica e, claro, mais um desacordo fundamental – e frontal - com o que pensava Platão. A verdade é que a virtude é para ele um valor inestimável. Fica claro que o processo político deve ser conduzido por homens virtuosos, prudentes e legisladores, capazes de governar uma cidade, única e exclusivamente, levando em consideração o interesse geral, e jamais os particulares. O governante não deve tirar proveito pessoal, nem para sua família, nem para a sua classe social. Aristóteles afirma que quando os ricos governam, e o fazem em seus próprios benefícios, o governo tem um caráter oligárquico. Ele também denomina a democracia o governo das massas que defendem seus interesses. Entretanto, para o pensador grego em questão, o pior dos desvios entre todos os sistemas políticos, sem dúvida, é a tirania. Esta, segundo a definição estabelecida por ele, somente acontece quando um indivíduo sobrepõe seu interesse pessoal sobre todos os demais. Trata-se do governo que defende, principalmente, o interesse do próprio governante. Para evitar anomalias no sistema político ele defende que a constituição seja a “alma da cidade”, entretanto, ressalta que as leis somente serão boas e úteis para um povo se fizeram parte de seu estado histórico e espiritual. As leis podem, enfim, serem mudadas quando degradadas e aperfeiçoadas através do consenso. O grande legislador, para Aristóteles, possui a “virtude política”. Trata-se de um homem que atua como uma espécie de conduta patriarcal, que tem a cidade como sua família. Por isso considera que seja justo um homem dessa estirpe exercer o poder e reinar sobre os demais. Contudo, o rei somente poderá ser considerado virtuoso, se governa em benefício de todos e rejeitar qualquer tendência para a tirania. O bom rei educa seus súditos para que eles também sejam virtuosos e se associem ao poder, evitando que a constituição da cidade tenha um caráter profundamente monárquico. Assim, o rei pode diminuir o seu poder e estabelecer uma aristocracia, bem no sentido etimológico do termo, ou seja, um governo dos melhores. Esse processo – o de ir paulatinamente agregando cada vez mais virtuosos cidadãos ao governo, ao centro do poder – deve desembocar num sistema que Aristóteles denomina de politeia, algo que pode ser traduzido como um “governo constitucional”. A formação constitucional do governo, entretanto, visa garantir que a cidade cumpra sua principal característica que é dar a cada cidadão, a cada família, no contexto social, a satisfação e a felicidade, quesitos primordiais na política aristotélica. Resulta dessa preocupação a seguinte afirmação de Aristóteles: “A Cidade tem como objetivo satisfazer as necessidades dos homens. Os homens formam as Cidades para assegurar uma subsistência básica; todavia, o objetivo último da Cidade é promover a vida boa. Na hierarquia da natureza, a cidade precede a família e o indivíduo. Ela é fundada pelo impulso natural do homem para a associação política”. (ARISTÓTELES, 2006, p. 35) Mas, para este pensador grego, a relação cidade/cidadão possui um intrínseco caráter de reciprocidade no que tange a governabilidade, já que nos ensina que (2006, p. 39), “o bom cidadão pode não ser um homem bom; o bom cidadão é aquele que presta bons serviços à sua Cidade”. Devemos ainda ressaltar que, também diferentemente de Platão, o papel do filósofo em uma cidade pensada politicamente por Aristóteles, não tem a mesma relevância, ou seja, não está destinado a governar porque detém a sabedoria. Na escola política aristotélica, o filósofo apenas pode contribuir, através de seu conhecimento e de sua experiência, para o desenvolvimento da virtude entre os homens e, mais essencialmente, na formação dos legisladores destinados, estes sim, aos mais diversos governos das cidades. Assim, os homens sábios que devem governar são os legisladores. Mas a visão deles, contudo, não era a de homens teóricos, mas a de práticos, já que suas funções se enquadravam na praticidade do governo. No Liceu, Aristóteles ensinava conhecimentos abrangentes que iam desde o direito, psicologia, matemática, história e música, entre outras disciplinas, e tais matérias encontraram aplicativos na gestão da cidade. Todos estes ensinamentos preparam o legislador para o governo. Entretanto, em Aristóteles, um cheiro de Platão, mínimo que seja, ainda é percebido quando os filósofos podem interceder como uma espécie de conselheiros, pois são ouvidos, inclusive, pelos legisladores. Referimo-nos a Platão, porque este, de certo modo, indicou que a Academia devia atuar como uma espécie de grande conselho, uma espécie de gabinete a ser consultado em situações especiais. Mas, na elaboração de seu pensamento político, Aristóteles foi mais ousado. A grande inovação aristotélica, a nosso ver, se apresenta no que hoje os pensadores contemporâneos chamam de economia, essa ciência que se apresenta de forma contundente, no mercado globalizado de nosso tempo. Em sua obra ele trata de assuntos como valor de uso, de troca ou de venda. Chega mesmo a citar exemplos, como é o caso do valor de um sapato que vale de uma maneira pelo seu uso, e de outro se destinado à troca ou venda. Sua ótica, apesar de valorativa de produtos, não podemos esquecer, sempre sobrepunha o gerenciamento político ao econômico. Nesse sentido, ele foi considerado ingênuo em apontar tal primazia. Aliás, ele foi rigorosamente enfático nessa questão, e chegou mesmo a escrever que (2006, p. 36) “não necessitamos daquela forma de finanças que acumula riqueza como um fim em si mesmo. Este é um tipo artificial de finanças. Ela foi feita possível pela invenção da cunhagem de dinheiro”. Para nós, no entanto, é evidente que a crítica a ele pode ser excessiva, já que sua idéia de política não incluía vaticinar o capitalismo, mas, sobretudo, harmonizar os homens em uma comunidade. Sua preocupação que pode ser considerada mais primordial, sem dúvida, foi considerar que a vida política, a própria convivência entre os homens - que ele considerava como animais políticos -, era desde o início, essencialmente no campo da ética. E, nesse sentido, ele ansiava que a cidade e os homens pudessem desenvolver a virtude, que os homens crescessem como cidadãos prestadores de serviços, e que, tendo as suas necessidades elementares supridas, pudessem, enfim, serem felizes. Aristóteles, então, pensou a política como “a arte da felicidade”. Para garantir a felicidade dos cidadãos, não podemos esquecer, Aristóteles prevê que o bom legislador deve ser possuidor de experiência e ser perspicaz, ter boa intuição e vivacidade no que concerne ao espírito. E isso ele não pode aprender teoricamente, mas através de sua própria vivência. Pensando assim ele quer garantir que o legislador esteja versado no que denomina como “coisas humanas”, que exige certas habilidades nas ciências práticas, e assim poder responder a contento na esfera dessas tais “coisas humanas”. Mas, o que o filósofo quer dizer com isso? Simplesmente que o responsável pelo governo de uma cidade, no caso o legislador, deve lidar com tudo aquilo que permeia o espírito humano, como por exemplo, em relação a vontade e a liberdade dos homens. Mas, quando reconhecemos essa preocupação de Aristóteles, compreendemos também que nesse exato momento de seu pensamento político, ele está tratando de uma antropologia social e política. E elaborou tão ineditamente o tema que transformou as questões sociais em objetos de estudos científicos. Esta ousadia é seu grande mérito. Ao exigir do legislador uma experiência mundana, há uma valorização da própria atividade humana, do existir dos cidadãos, principalmente daqueles que possam gerenciar as “coisas do mundo”. Quem - como legislador - se habilita para exercer o poder, deve demonstrar tal experiência e, consequentemente, resolver as mais complicadas questões que envolvem as complexas teias do comportamento humano. E sempre com o objetivo principal da vida política: satisfazer as necessidades dos cidadãos. Como, porém, Aristóteles trata ou conceitua o poder? Ele distingue várias formas de poder. Afirma, inclusive, que o poder tem uma diversidade de espécies. Ou formas diferenciadas do poder político, que é exercido desde o âmbito doméstico até as atividades sociais e comunitárias. Chega mesmo a declarar que o poder é exercido numa espécie de cadeia que se inicia numa base familiar, se estende pelo interesse comercial e chega até ao poder político propriamente dito. E exemplifica: o poder do dono sobre o escravo, do marido sobre a mulher, dos pais sobre os filhos, do rei sobre os que são considerados súditos, enfim, como ele próprio defendia, do legislador, ou magistrado, sobre os cidadãos. E essa cadeia deve funcionar harmonicamente. O poder político, para Aristóteles, entretanto, não deve ocorrer através da opressão, subjugação de um povo sobre outro, impondo a escravatura e a tirania, mas por meio de uma delegação consensual e representativa. Então aqui, com a representatividade do poder político, temos mais uma inovação: pela primeira vez na história um pensador expõe de maneira científica, o que seja o poder político, e exatamente naquilo que lhe é mais essencial: o seu sentido real. Ora, Aristóteles não reconhecia como legítimo o poder opressivo, de subjugação, como, por exemplo, o de certos grupos bárbaros, onde a relação era de escravatura. Ele fazia essa distinção no poder político que, para ele, deveria ser exercido sob uma delegação. Nesse sentido ele fazia valer o termo “política”, que vem de “polis”, ou seja, “cidade”. Assim, de maneira inédita, conseguiu expor, demonstrar, de forma diferenciada, uma verdadeira representação científica quando em se tratando da questão política. Mesmo quando disserta sobre diferentes regimes políticos, Aristóteles faz valer seu método científico. Sua narrativa, contudo, é profundamente teórica. Ele examina todas as constituições possíveis para apontar a melhor forma de poder político. Em toda a sua análise, entretanto, ele distingue sempre três partes comuns que são, ou correspondem ao que chamamos hoje de executivo, legislativo e judiciário. Nesse caso ele avalia as funções, a quantidade de cidadãos que as ocupam e o tempo de duração desse exercício. Sem querer ele pode ter indicado a idéia daquilo que, num futuro distante, se chamaria de “mandato político”. Depois dessa minuciosa análise em seus livros centrais que trata da questão política, e ter mostrado aos legisladores a grande dimensão das “coisas humanas”, Aristóteles espera que estes estejam suficientemente capacitados as mais diversas situações. Um regime está mal adaptado, em crise, segundo Aristóteles, se um número diminuto de cidadãos, por mais virtuosos que sejam, mantém o poder político de forma privilegiada, fazendo dele um monopólio em seu benefício. Ao manter o poder de forma restrita, esse grupo de pessoas acaba por alijar das instâncias diretivas da cidade a maior parte dos cidadãos, o que torna o regime mal adaptado e desvirtuado de seu principal objetivo: a felicidade de todos. Tal procedimento é comum quando se trata de regime aristocrático. E nesse caso se faz necessário mudar a constituição da cidade, saindo do comando aristocrático, para um regime mais popular, alterando a constituição. Isso significa dizer que, para Aristóteles, as instituições são desvirtuadas e funcionam de maneira errônea quando não estão a serviço de todos os membros da cidade. Quando uma constituição é mal adaptada, fatalmente, as instituições também não funcionarão a contento. E quando isso acontece faz-se necessário, então, mudar as leis que regem a cidade, mudando, inclusive, o regime de governo, deixando de lado o sistema aristocrático para um sistema que intere a maioria, de caráter mais popular. Pode parecer estranho, mas de alguma maneira, Aristóteles ainda tenta dar uma esperança de converter o tirano para o caminho da virtude política, e faze-lo governar com as virtudes do bom legislador. Ele caracteriza a tirania como algo semelhante às ditaduras como as conhecemos atualmente. Diz que o tirano não deve governar porque humilha os cidadãos, submete-os ao medo e corrompe as relações sociais e violas todos os direitos individuais. Por isso ver apenas dois caminhos para o tirano: ou se torna cada vez mais e mais tirano baseando seu governo quase que exclusivamente na opressão, ou, o que é surpreendente em Aristóteles, redirecionar seu governo para as leis justas e virtuosas, se tornando um verdadeiro rei. De forma progressiva, isso pode ser possível. Pelo menos é nisso em que acredita o próprio Aristóteles. Essa crença, entretanto, não é mera ingenuidade de um bom espírito. Ao pensar em política ele criou uma teoria sobre tudo que o existia no mundo antigo. Sua análise vai desde a escravatura, comum em várias partes da antiguidade, até o funcionamento das cidades e, nesse quesito, inovou, e inovou com maestria, pois foi o primeiro a ter a cidade como objeto da ciência política. Aristóteles, assim, fundamenta suas idéias na antropologia política, e como primeiro pensador da política, analisa as instituições, seu funcionamento, objetivos e constituições. Contudo, sempre manteve uma idéia fixa: a política deve levar a felicidade ao homem. Caso contrário, não será digna deste nome.

Nenhum comentário: