terça-feira, 16 de junho de 2015

ADEUS, VELHO CAMARADA!



 
Notícia ruim - para ser ruim de verdade - chega cedo.

A informação da morte de Armando Dantas não poderia ser excessão: chegou bem cedo, logo pela manhã, no primeiro gole de café, e trazendo consigo o fastio que nos obriga a dispensar a torrada, e nos desobriga de continuar o desjejum regrado pela dieta que, por sua vez, tenta estender a vida, que é curta.

 
A morte de um amigo entristece a nossa existência. Mais que isso, pois, via de regra, uma notícia assim nos sacode como uma porrada na boca do estômago, não como um susto anunciado. Mais ainda: faz a gente perceber a nossa fragilidade e nos deixa menos duros, mais tolerante. E até mais conformado com a própria morte, augúrio fatídico, pois, humano.

 
Mas, a morte de um amigo é também mais do que tristeza: é lição definitiva.

 
De supetão, a gente traz à mente imagens de uma amizade intermitente, e no meio delas, naturalmente, uma se sobressai. Uma lembrança entre muitas sempre se destaca no enredo da memória e se estabelece de modo permanente, algo assim como a Itabira de Drumonnd: um retrato na parede. Que lembrança vou guardar do Armando?Apenas uma: a de um abraço.

 
Ou a história de um abraço, que seja.

 
O ano era o de 1980 e lá se vão 35 anos. Éramos jovens ainda. Ele, um acreano de pé rachado fincado em Rio Branco. Eu, um estudante acreano fincado em Ribeirão Preto. Em comum, a nossa infância no bairro da Base, onde vez por outra, éramos botos matreiros. Aquela década era a de um tempo em que o velho Ulysses Guimarães colocava um P no velho MDB, que fora abrigo de sonhadores, muitos clandestinos. Era um tempo de reconstrução da democracia e da União Nacional dos Estudantes, que voltara à legalidade. A UNE realizava em Piracicaba um histórico congresso e todas as correntes políticas comuns ao movimento se faziam presentes, ferozes entre si, numa disputa onde grupos que viviam às turras, não raro, chegavam às vias de fato, o que era um prato delicioso para a imprensa burguesa de então.

 
Como membro da delegação de estudantes paulistas, eu cheguei ao congresso de Piracicaba travestido de trotiquista inveterado e sedento por sangue stalinista. A recíproca era verdadeira. A tensão era convidada contumaz nesses eventos!

 
Logo na abertura dos trabalhos, no ginásio de esportes da cidade, não deixei de avistar um rosto que me pareceu familiar. Também não demorei a perceber que era ninguém mais, ninguém menos que Armando Dantas, o militante, não somente cercado de stalinistas, mas liderando-os! Incontinenti, subi a arquibancada e cheguei até a delegação acreana, que ele capitaneava, e me vi no meio do grupo pasmado, que me olhava sem nada entender. Eu olhava para o Armando e ele para mim. Depois do reconhecimento mútuo, nos abraçamos, festivos, como dois moleques de beira de rio, que corriam atrás de pepetas cortadas. O abraço foi inoportuna, mas camarada. Apesar das trincheiras distintas.

 
Aquele talvez tenha sido o único congresso da UNE, em que um trotiquista e um stalinista se abraçaram, sem estarem brigando. Não que o Acre esteja acima dessas querelas estudantis, mas aquele abraço revelou que uma boa amizade de infância respeita os sonhos de cada um, mesmo os não compartilhados. Anos depois a vida se encarregou de nos colocar na mesma trincheira.

 
E compartilhar os mesmos sonhos.

 
Na minha parede da memória, o retrato de Armando, entretanto, não será o do dirigente partidário, do burocrata, do conspirador atuante, do contador de histórias, do Baú dos amigos, do empresário, do peemedebista tradicional ou do bom pai de família, e nem mesmo do homem adoentado dos últimos anos. Não! Definitivamente não!

 
O quadro na minha parede será o do militante.

 
Terei dele, pois, a recordação do militante juvenil. Aquele abraço revelara a ternura guevarista que ele escondia por trás da sua voz de barítono trovejante, e desnudara a lealdade política de sua postura de militante.

 
Sim, Armando Dantas era, antes de tudo, um militante.

 
Para ele, a militância era algo - essencialmente - de natureza didática. E foi nela que ele estudou e aprendeu, construiu sua cátedra e ensinou. Mas, principalmente, foi na militância que Armando Dantas forjou a sua história. E nela viveu.

 
Adeus, camarada.