terça-feira, 19 de julho de 2011

A moral de Tartufo

A hipocrisia é a arte de amordaçar a dignidade; ela faz emudecer os escrúpulos nos espíritos incapazes de resistir à tentação do mal. É falta de virtude para renunciar a éste, e de coragem para assumir a sua responsabilidade.

É o guano que fecunda os temperamentos vulgares, permitindo-lhes prosperar na mentira: como essas árvores cuja ramagem é mais frondosa, quando crescem nas imediações dos lodaçais.

Gela, por onde ela passa, todo nobre germe de ideal: é o evento rijo e frio que destrói o entusiasmo. Os homens rebaixados pela hipocrisia vivem sem sonho, ocultando suas intenções, disfarçando seus sentimentos, dando saltos como uma fera; têm a íntima certeza, embora inconfessada, de que seus atos são indignos, vergonhosos, nocivos, arrufinados, irremissíveis.

Por isso, sua moral é dissolvente: envolve sempre uma simulação.

Os hipócritas não são impelidos por fé alguma; não suspeitam o valor das crenças retilíneas. Esquivam a responsabilidade das suas ações, são audazes, na traição, e, tímidos, na lealdade.

Conspiram, e agridem na sombra, espeçonhentas, e difamam com aveludada suavidade. Nunca ostentam um galardão inconfundível: cerram todas as frinchas do seu espírito, pelas quais poderia escapar-se, ou revelar-se, a sua personalidade nua, sem roupagem social da mentira.

É seu anelo simular as aptidões e qualidades que consideram vantajosas, para acentuar a sombra que projetam no seu cenário. Assim como os engenhos exíguos macaqueiam o talento intelectual, sobrecarregan-do-se de requintados artifícios, subterfúgios e defesas, os indivíduos de moralidade indecisa parodiam o talento moral, ouro pelando de virtude a sua insípida honestidade.

 Ignoram o veredicto do próprio tribunal interior; aspiram o salvo-conduto outorgado pelos cúmplices dos seus prejuízos convencionais.

O hipócrita costuma tirar vantagens da sua virtude, fingida, em maior proporção, do que o verdadeiro virtuoso. Pululam homens respeitados, somente porque ainda não foram descobertos sob sua máscara; bastaria penetrar na intimidade dos seus sentimentos, por um minuto apenas, para advertir a sua dobrez, e transformar, em desprêso, à estima.

O psicólogo reconhece o hipócrita; traços há que diferenciam o virtuoso do simulador; pois, enquanto este é um cúmplice das opiniões que fermentam em seu meio, aquele possui algum talento que lhe permite so-brepôr-se a elas.

Todo apetite pecuniário desperta a sua argúcia, e o impele a descobrir-se.

Não retrocede diante de artimanhas, é fácil às reverências fementidas, sabe farejar o despojo de amos, vende-se ao melhor ofertante, prospera à força de maranhas. Triunfa sobre os sinceros, toda vez que o êxito se estriba em aptidões vis: o homem real é. com freqüência, a sua vítima.

Cada Sócrates encontra a sua cicuta, e cada Cristo, o seu Judas. (José Ingenieros - 1877-1925)