sábado, 16 de abril de 2011

Toda brincadeira tem sempre um fundo de verdade





Sorri quando a dor te torturar

E a saudade atormentar

Os teus dias tristonhos vazios



Sorri quando tudo terminar

Quando nada mais restar

Do teu sonho encantador



Sorri quando o sol perder a luz

E sentires uma cruz

Nos teus ombros cansados doridos



Sorri vai mentindo a sua dor

E ao notar que tu sorris

Todo mundo irá supor

Que és feliz



O poema belamente musicado de Charles Chaplin, logo na abertura desta crônica, não deixa dúvida: nem toda brincadeira tem um fundo de verdade, mas existe brincadeira de verdade, ou seja, que é pura brincadeira mesma. Pelo menos é o que podemos apreender como em silogismo: a brincadeira é brincadeira, logo é verdade que é brincadeira.

O que o ditado, afinal, quer dizer é que pode existir alguma crítica, geralmente maledicente, em algumas brincadeiras. O que também ocorre de praxe. Não raro, as pessoas que não tem coragem de desembuchar suas verdades recalcadas ou suas invejas vergonhosas utilizam de subterfúgios para dizer uma coisa ou outra.

Também não é raro costumarmos dizer: quando tudo começou não passava de brincadeiras... Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando, falei muitas vezes como um palhaço, mas jamais duvidei da sinceridade da plateia que sorria, afirmou ainda o velho Chaplin.

Brincadeira e verdade, a rigor, não tem nada uma a ver com a outra. Mas não são objetos dissonantes, coisas que, como água e óleo, não se misturam. Estas se misturam, sim.

Tão pouco são implicitamente desassociativas.

Perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez! E falsa seja para nós toda a verdade que não tenha sido acompanhada por uma gargalhada! – prega Nietzsche. Logo ele, um sabedor que somente a alegria é o melhor remédio para que o homem possa suportar sua trágica existência.

Contudo, não creio que devamos levar ao pé da letra o ditado.

Isso seria uma enorme consideração com a brincadeira em si. Afinal, brincadeira tem limite. Quem não brinca não vive. Quem não tem a alegria dentro de si não pode ser uma pessoa feliz. Dentro do permitido circo trágico.

A brincadeira é o oxigênio das emoções humanas.

Nietzsche, em sua dor quase eterna, em vida, nunca deixou de fazer suas brincadeiras, algumas ferinas, mas sem pretensão de verdades absolutas, porque era um homem que abominava as convicções.

(...) foi o próprio Deus que ao fim de sua obra se disfarçou de serpente indo se deitar sob a árvore do conhecimento: assim ele se restabeleceu do fato de ser Deus... Ele havia feito tudo demasiadamente belo... Brincava, infantilmente, o filósofo.

O que agrava a existência humana nestes dias são as desconfianças, a selvageria do corre-corre que não permite gentilezas. Ou pelo menos desconfiamos delas. O mundo criou regras sob um capitalismo que ainda permanece selvagem em sua essência e arrasa vidas quando colide, grosseiramente, com as emoções.

Não por outra coisa, afirmo: para viver sob o capitalismo é necessário socializar as emoções.

Nele, é proibido brincar, parece.

As pessoas vivem dizendo verdades e mentiras com uma seriedade invejável. Portanto, não venham utilizar a brincadeira nessa concupiscência de sua vaidade sem sentido, e, muito menos, fazer da brincadeira um instrumento da sua maldade. Principalmente isso.

Que morram, pois, os que não sabem brincar! Pelo menos assim, somente teríamos crianças no mundo. As crianças brincam de verdade e seus olhos espelham a diversão feliz e inata da brincadeira pueril. Com seriedade.

Brinquemos em comum, crianças, adultos e velhos, numa ciranda enorme, com as mãos dadas e festejemos a alegria de viver, apesar da ignomínia humana. Que os homens jamais desaprendam que nunca se passa da hora de brincar!

Assim seremos mais gentis um com o outro.

Culpamos as pessoas das quais não gostamos pelas gentilezas que nos demonstram. Elogiamos ou criticamos de acordo com a maior oportunidade que o elogio ou a crítica oferecem para fazer brilhar a nossa capacidade de julgamento, escreveu Nietzsche, que completa: em certas pessoas, o alegrar-se com um elogio, é apenas uma delicadeza do coração - e precisamente o contrário de uma vaidade do espírito.

Podemos sim colocar a verdade onde quisermos - brincando ou taciturnamente - o que não podemos é deixar de por a verdade em nossa vida, como princípio; não podemos deixar de brincar sempre que pudermos e, principalmente, não podemos deixar de nos alegrar como norma de ser feliz.

O filósofo, como o entendo, é um explosivo terrível na presença do qual tudo está em perigo. Ao afirmar tais palavras, nosso filósofo se coloca acima dessa querela, e aposta que o pensador é uma metamorfose ambulante – como diria Raul Seixas – prestes a explodir, seja na brincadeira ou no que seja vero.

Por isso Nietzsche se dizia uma dinamite.

Ora, as brincadeiras embutidas de críticas (ou “verdades”, como queiram) apenas tem um sentido: emitir uma opinião covarde. Quem não tem confiança em si usa de maneira enviesada para se expressar. A covardia é dupla quando se usa a brincadeira.

Se temos que mudar de opinião a respeito de alguém levamos-lhe muito a mal o incômodo que assim nos causa. Essa é a explicação de Nietzsche para o caso. Nós, nos autodenunciamos quando mudamos o pensamento sobre o outrem.

A brincadeira disfarça. É uma desgraça.

Tudo é uma questão de valores. Seguir o que a sociedade podre exala de podridão é a lei. Moralidade é apenas o invólucro que o poder usa para saciar sua tara por mais poder.

Cobrem com falsa decência a indecência de seus valores.

Ter-se vergonha da sua imoralidade: é um degrau na escada em cujo extremo se tem também vergonha da nossa moralidade. Eis o que revela o profeta que desmistificou os valores. Mesmo assim, a podridão fede de longe.

E o homem comum se sujeita isso.

E faz da brincadeira um instrumento de sua submissão moral e intelectual

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O pior cego é o que não quer ver

Eis um ditado com profunda reflexão filosófica.
Talvez nenhum outro ofereça tantos ângulos de observações como este, que tem uma diversidade de facetas para todos os gostos; modos de apresentações diversificadas e que, mesmo assim, ainda dar de cara com o tipo que, simplesmente, não entende, não quer ver.

O vencido pela obtusidade. Este é o pior cego.

Quanto à origem do ditado, o mais corrente pelos quatro cantos do mundo enquanto visão enciclopédica é uma historieta que se revelou na Idade Média, na Europa, mas propriamente na velha França.

Sempre os franceses... E seus fricotes.

Contam os pesquisadores de abobrinhas que, em 1647, em Nimes, na França, onde existia uma universidade local de criteriosos estudos e grandes avanços, o doutor Vicent de Paul D`Argenrt fez o primeiro transplante de córnea em um aldeão de nome Angel.

Eram meados do século XVII.

Como não poderia deixar de ser, o acontecimento foi uma revolução e um enorme sucesso para a medicina da época. Estranhamente, menos para Angel, o aldeão, que, assim que passou a enxergar ficou horrorizado com o mundo que via.

Talvez esperasse outra coisa do que passou a ver.

Disse ele, por exemplo, que o mundo que imaginava era muito melhor. Mais estranhamente ainda, porém, ele pediu ao cirurgião que arrancasse seus olhos, e que o cegasse novamente. Insistia no pedido, com veemência.

Ele queria voltar a ser cego.

O caso foi acabar no tribunal de Paris e no Vaticano. Angel, o aldeão francês ganhou a causa e entrou para história como o cego que não quis ver. Provou que poderia viver sem ter que ver um mundo tão cruel. E assim ele viveu os restos de seus dias. Sem nada ver.

A história é muito bonita, embora mais pareça uma parábola.

Ela, entretanto, não corresponderia ao ditado, pois, no caso, Angel, o aldeão, não se trataria do pior cego, mas meramente um cego de bom coração que optou em não ver a excrescência humana. Ou então o pior cego pode ter um bom ou um mau coração, não importa, basta apenas desistir de ver, que será o pior.

"O homem procura um princípio em nome do qual possa desprezar o homem. Inventa outro mundo para poder caluniar e sujar este; de fato só capta o nada e faz desse nada um Deus, uma verdade, chamados a julgar e condenar esta existência."

O ensinamento acima, de Nietzsche, ilustra que não interessa o mundo em que vivamos, sempre vamos procurar botar defeito nele, criar deuses, inventar verdades, julgar e condenar as pessoas. Somente enxergamos neste mundo aquilo que desejamos enxergar, aquilo que nos interessa.

Passa-se com o homem o mesmo que com a árvore.

“Quanto mais quer crescer para o alto e para a claridade, tanto mais suas raízes tendem para a terra, para baixo, para a treva, para a profundeza - para o mal”, ilustra o ilustre bigodudo Nietzsche.

Outros opinam que esse tipo de homem que não quer ver, é que nem um avestruz que mete a cabeça no buraco para nada ver. Mas a verdade não é bem assim. Pelo menos sobre o avestruz, bastante injustiçado neste caso.

O avestruz não mete a cabeça no buraco para deixar de ver. Ou se esconder, mas para comer.

Ora, o avestruz é a maior ave do planeta, sempre carregou a fama de ser um animal frágil e medroso. Não é ele que, em desenhos animados ou histórias em quadrinhos, diante de qualquer dificuldade, corre para enterrar a cabeça em um buraco?

Pura lenda.

Esse comportamento, na verdade, não tem nada de covarde, mas é natural do bicho que passa grande parte do seu dia comendo. Os pesquisadores descobriram que, ao meter a cabeça num buraco, o avestruz não faz nada mais do que procurar algum tipo de roedor ou outro vertebrado para matar sua insaciável fome.

Portanto, não o usem como exemplo da cegueira ignorante que é própria do homem. Por isso é que Nietzsche nos alerta sobre essa inteligente questão:

- O homem que vê mal vê sempre menos do que aquilo que há para ver; o homem que ouve mal ouve sempre algo mais do que aquilo que há para ouvir. Assim, fica claro que a ótica humana, por ser subjetiva, é limitada e inconfiável.

Se o aldeão francês se recusou a ver tanta ignomínia sobre a terra, por que não buscou ver o seu oposto? Por que ignorou a arte? O teatro estava lá, a música tocava nos violinos, os versos varavam as madrugadas. Mas ele não quis saber de nada disso. Ele somente enxergou o mal, como mandava seu coração.

Tinha mais era que ficar cego mesmo, o bruto.

"Só como fenômeno estético a existência e o mundo aparecem eternamente justificados." Como fenômeno estético, pois, concebemos a própria arte. E a arte, para Nietzsche ajuda a suportar a vida. Mas, “há espíritos que escurecem suas águas para fazê-las parecer profundas”. Para esse estará sempre à mostra o trágico inerente à existência, sem que seu antídoto, a alegria possa ter a sua vez de ser contemplada, vivida. A alegria, o antídoto, para o trágico.

Cada um somente ver o que lhe convém, por isso Nietzsche afirmou:

- As paisagens insignificantes existem para os grandes paisagistas; as paisagens raras e notáveis são para os pequenos.

Em tudo, o infeliz prefere ver o desarranjo, a nevasca, a tempestade de areia e a inundação sinistra que mata o homem. O homem que não deseja enxergar a vida, apenas ver loucura em tudo, esquecendo-se que “nos indivíduos, a loucura é algo raro, mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra”, como observava Nietzsche.

Que enxerguemos, pois, todas as nuances da existência humana.

E que percebamos, por fim, que uma boa dose de loucura faz muito bem para a saúde. O que não faz bem às pessoas, de modo geral, é fazê-las enxergar um mundo imaginário e um deus invisível.

Mas isso, os tolos enxergam. Até o pior cego também, quero crer.

Não é por outra coisa que sou forçado a crer que, a rigor, o pior cego não é só exatamente aquele que não quer ver, mas também aquele que ver o que não existe. E pior, crer.

O cristão, por exemplo.